Em algum momento da
infância, a maioria se questiona se foi abençoado com dons sobrenaturais. As
conversas sobre quais super poderes gostariam de ter é um passa tempo
delicioso. Imaginar-se voando, lendo mentes e tendo super força é o tipo de
coisa que faz as pequenas felicidades do dia-a-dia de uma criança. Mas a ideia
de ser especial vai morrendo aos poucos e quando o sujeito se vê pagando o
boleto do cartão de crédito, a conta de luz e é assaltado na esquina de casa...
A ideia já está morta e enterrada. Ser adulto é reconhecer que ninguém é
especial. Somos todos grãos de areia e nunca passaremos disso. Bem vindo à
realidade.
Marina foi uma dessas
crianças. Quando era pequena, seu sonho era conversar com os animais. Por
muitas vezes ela tentou conversar com cães, gatos e até mesmo galinhas do sítio
de seu tio. Cresceu, descobriu que os cães se orientam pelo tom da voz das
pessoas, e não pelas palavras ditas. Não foi uma frustração, ela apenas
aceitou. Aconteceu o mesmo quando descobriu que o Papai Noel era seu tio (o
dono do sítio onde estavam as galinhas).
Quando Marina ficou ainda
mais velha, decidiu que queria ser geneticista. Nascida em família humilde,
onde dois ou três tinham nível superior e a maioria frequentava a igreja
regularmente, ninguém criticou sua escolha, porque na verdade nem sabiam o que
um geneticista faz. “É coisa com célula tronco?”, perguntou a prima. Inicialmente
ela quis exatamente aquilo, mas sua mente foi mudando aos poucos. A influência
religiosa naquela família abriu as portas para novos questionamentos
científicos.
Mariana não se lembrava como foi a conversa com sua mãe, mas
sabia que estavam falando sobre os milagres de Cristo. Mariana debandara da
igreja, mas continuava sendo cristã. Acreditava em milagres, mas queria entende-los.
Sua mãe explicou com uma frase decorada: “Jesus é o filho de Deus! Ele podia
curar e andar sobre as águas porque é superior a nós, mortais”.
Então Jesus era superior
mesmo, mas ele era de fato um ser
humano? Aquilo já tinha sido proposto por dezenas de teóricos, mas Mariana decidiu
que era um ótimo assunto para se aprofundar. Inicialmente com uma pesquisa do
Google, depois com outros pesquisadores... Quem sabe chegar ao Vaticano, não?
Depois de muita leitura e conversas
com pessoas adeptas à teorias da conspiração, Mariana decidiu conversar
pessoalmente com outro pesquisador do mesmo tema. Marcaram em um café da
cidade, chegaram na hora e pediram dois cafés. Mariana bateu papo com Dr.
Costa, mas que logo insistiu para ser chamado de Paulo. Era um senhorzinho
simpático.
– Como já havíamos
conversado por telefone, eu estou muito interessada em suas pesquisas.
– Por que pesquisar o que
tantos outros já pesquisaram?
– Porque até hoje ninguém
chegou a uma resposta. Eu acredito que se unirmos nossos esforços, talvez nós
possamos...
O pesquisador levantou a mão
pedindo que ela parasse de falar.
– Eu parei com as pesquisas
e sugiro que você faça o mesmo. Eu vim até aqui para lhe dizer justamente isso.
Está estudando coisas que não deviam ser estudadas.
O tom na voz dele era
diferente. Era uma advertência vestida de conselho. Mariana ficou alguns
segundos quieta, olhando para o homem. Ele então tirou a carteira do bolso,
colocou dinheiro na mesa e se levantou.
– Por quê?
– Apenas faça o que eu
disse.
Obviamente Mariana ignorou o
conselho do velho cientista. Talvez a idade estivesse confundindo a mente dele,
ou talvez quisesse assustá-la para evitar uma concorrente de alguma descoberta.
Alguma super descoberta.
Continuando suas pesquisas –
agora em bibliotecas públicas e universidades – Mariana começou a dedicar mais
tempo às suas pesquisas. Meses depois
ela havia acumulado tantas anotações que começava a pensar em desistir. Não
conseguia chegar a nenhuma conclusão, ainda que tivesse descoberto várias
ligações entre centenas de “seres superiores” em diversas culturas durante toda
a História da humanidade. Não apenas deuses cultuados pelos seres humanos, mas
pessoas comuns com habilidades únicas.
Decidiu que publicaria o
estudo. Sua primeira opção foi uma revista científica que gostou da ideia e
aceitou a proposta. Um repórter viria fazer entrevistas no dia seguinte. A
eficiência não deixou Mariana desconfiada, mas deveria.
O encontro com o repórter se
deu em uma lanchonete não muito interessante. Era um rapaz sério, cabelos
pretos, camisa branca... E estranho. Ele era quieto demais para ser um
repórter, observou Mariana. Ele fez perguntas, anotou em seu bloquinho e gravou
tudo em um gravador portátil. Quando Mariana terminou de explicar suas
descobertas e tirou os arquivos da bolsa, o repórter estava digitando algo em
seu celular.
– Preciso publicar isso com
exclusividade. Divulgou o caso para outras pessoas?
– Não... Minha família sabe.
–pensou melhor e completou– E falei com Paulo Costa, que era pesquisador do
assunto, mas ele não quis me ajudar.
– Ótimo. –o repórter disse
fechando o bloquinho de papel– Quero que preste muita atenção no que vou lhe
dizer: esse é um assunto que não deve ser mencionado nunca. Você voltará para
sua casa, queimará todos os arquivos desse assunto e continuará sua vida.
De repente ela entendeu o
tom do velho pesquisador. Sentiu medo e olhou ao redor... A rua estava cheia,
mães andando de mãos dadas com seus filhos, um cara andando com um cachorro,
dois rapazes rindo... Muitas testemunhas.
– Ou o quê? Você não pode me
matar no meio da rua, na frente de todo mundo.
O homem arqueou as
sobrancelhas um instante. Ele ergueu a mão e todas as pessoas pararam de andar ao mesmo tempo. No instante
seguinte todos se viraram para a direção oposta da lanchonete. Todas as pessoas
estavam de costa, incluindo os clientes da lanchonete. Eram como robôs desligados
da tomada. Mariana sentiu as mãos começando a tremer compulsivamente. O tempo
não tinha parado, as pessoas sim.
– O que você fez?
– Sua pesquisa fala sobre
seres superiores que têm poder individual, como os gênios; mas também fala do
poder sobre os outros, como os santos. O que acha que eu fiz?
Ele era um daqueles seres
superiores, sem dúvida. Ele vai me matar, constatou Mariana.
– O mundo não precisa saber
desse tipo de coisa. Se precisasse, nós mesmos falaríamos. Não vou te fazer
nenhum mal se aceitar esses termos, mas se falar sobre o assunto com uma única
pessoa no mundo, nós saberemos. Nós sabemos onde você mora e conhecemos sua
família. Conheço seu passado e conheço seu futuro. Sei como você nasceu e como
vai morrer. Não somos os vilões, Mariana... Somos os heróis. Esses são assuntos
muito mais complexos e antigos do que você pensa. Sua pesquisa não chegou nem
perto da verdade, mas isso mexeria muito com sua sociedade. Vocês não estão
preparados pra isso.
Ele abaixou a mão e as
pessoas voltaram a se movimentar. Ninguém percebeu que alguma coisa fora do
normal tinha acabado de acontecer. Tudo estava na maior e absoluta paz.
– Ok, juro que não tocarei
mais no assunto... –ela disse, respirando fundo– Mas pode me dizer o quê você é?
Mariana ouviu uma vozinha em
sua mente, como um sussurro... Ela dizia “comida, comida” sequencialmente. Seus
olhos correram para a calçada, onde uma pomba cinza comia um pedaço de pão
sujo. “Comida”, dizia a pomba mentalmente. Seus olhos foram para o rapaz que
continuava passeando com o cachorro na rua. “Cheiro de outro cão, cheiro de
carne, barulho estranho, cheiro de rato...”. Ela voltou a olhar para o suposto
repórter e então as vozes pararam. Seu sonho de infância se realizara por breves segundos. Aquilo era mágico, mas também era uma ameaça. De alguma forma, ele sabia tudo.
– Já tive muitos nomes. Sou
um pedaço do que seu mundo chamaria de deus.
– Um pedaço? –mas ela logo
se colocou em seu lugar e calou-se.
A criatura a sua frente
sorriu. Era um sorriso calmo. Os pensamentos de Mariana se agitavam em sua
mente. Tudo o que sabia sobre ciência e religião se debatiam. Ele era um anjo?
Ele era um deus antigo? Ele era um espírito? Ele era Deus? Ele era...?
– Vocês, humanos, são
engraçados. Gosto de vocês. Não sou nada do que você pensou, mas sou tudo ao
mesmo tempo. Agradeceria que você mantivesse o acordo e nunca falasse disso.
Farei com que você se esqueça de muitas partes dessa conversa, mas a ideia
central continuará em sua mente. Não sou assim tão cruel. Agora, por favor...
Ele estendeu a mão sobre a
mesa. Mariana estendeu a própria mão para tocá-lo, mas não se lembrava de ter
conseguido terminar o movimento. Acordou em casa, aninhada no cobertor e
sabendo que tinha sofrido uma experiência incrível.
Adoro seus contos!
ResponderExcluir~S.V.
Muito obrigada!
ExcluirFico feliz que os bons e velhos leitores continuem fiéis por aqui! <3
Muito obrigada!
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