terça-feira, 8 de outubro de 2013

[conto] O Rio - Parte 3






Então meu telefone tocou.
─ Oi, é o Bruno... A Mariana está com você?
─ Não...
─ To tentando ligar pra ela faz tempo, mas não sei onde ela está... Bom, se conseguir falar com ela, me liga ok?
E desligou. Procurei o número dela na agenda do celular e liguei, mas ela não atendeu. Liguei para o restaurante dela, mas ninguém sabia dela. Durante a ligação, meu celular vibrou como sinal de mensagem.
Ok, poderia ser a operadora do celular, meus pais, meus amigos, respostas para a entrevista de emprego (num domingo, é)... Mas não, a vida não é tão fácil assim.



A mensagem, de um número anônimo, dizia: “Sentindo falta da namoradinha? Que bom. Eu sinto falta de 100 mil daquele total. Tentaram me enganar?”
Meu coração quase parou. Soquei a mesa e senti a dor irradiar pelo meu braço. Li a mensagem várias vezes seguidas. Não poderia ser verdade! o dinheiro estava certo...
Não podia ser só coincidência... Bruno me ligou e logo em seguida recebi aquela mensagem?! Tinha que ser ele! Santo Deus, se ele fizesse algo com Mariana...
O que ele queria?! Dinheiro?! Não... Não... Atenção? Vingança pela bronca que ele levou dos policiais há 15 anos?! Puta que o pariu, Bruno!
Afundei as mãos nos cabelos e respirei fundo. Precisava ficar calmo. Liguei para Lúcio e contei sobre o ocorrido e minhas desconfianças. Ele ouviu e concordou.
Chegamos à conclusão de que eu deveria voltar para a cidade onde tudo começou. Combinamos um ponto de encontro para chegarmos juntos e resolver logo aquilo. Era hora de acabar com aquela palhaçada.
Sai com o carro cantando pneus. Lúcio me esperou em certo ponto da estrada. Não parei. Dei apenas uma buzinada e ele logo colocou a moto na estrada, me acompanhando.
Devo ter recebido muitas multas naquele final de tarde e começo de noite. Chegamos à cidade quando as luzes da rua já estavam ligadas. Lúcio me guiou até a casa de Bruno. Descemos sem nos cumprimentar.
Lúcio apertou o botão do interfone e as portas se abriram para nós. Entramos. Era uma puta casa enorme, linda, bem iluminada, com árvores e piscina. Mas eu não reparei nisso na entrada. Quando vi Bruno aparecendo na porta, eu não vi mais nada.
Peguei o político pelo pescoço e o empurrei até a parede. Minha mão ia afundando na garganta dele aos poucos.
─ Onde ela está? ─gritei.
Ele tentou falar, não conseguia. Sua preocupação era se debater e tentar se livrar de mim. Nunca fui um homem muito mais forte que os outros, nem muito mais fraco. Bruno era um pouco mais baixo que eu, então ganhei vantagem.
─ Onde ela está? ─falei novamente.
Lúcio chegou até mim correndo. Acho que ele deve ter apreciado o show antes de se envolver. Me afastou de Bruno aos puxões.
─ Se fizer isso ele não vai falar, idiota. ─ele murmurou para mim─ Agora, Bruno, meu velho amigo... Onde ela está?
Ele levou a mão à garganta e começou a tossir. Ele olhava para mim e depois para Lúcio como quem diz: Segura esse louco! Ele tentou me matar!
─ Eu vou... Chamar a polícia! Seus... assassinos!
Falava engasgando, tossindo. As mãos dele tremiam e as pernas pareciam estar presas ao chão. Por um momento ele me lembrou daquela noite, há quinze anos... Eu ficara assustado.
Eu dei um passo em direção a Bruno e ele recuou como um animalzinho indo para o abate. Lúcio deu uma risadinha sádica e se colocou entre nós dois.
─ Vamos entrar, senhores. ─Lúcio disse─ Precisamos conversar.
Entramos. A casa era grande. Uma mulher veio correndo em nossa direção. Olhou para mim assustada, em seguida para o chefe:
─ Está tudo bem, senhor?
─ Está sim ─disse Lúcio sorridente─ Sabe como são essas brincadeiras de velhos amigos, né? Parecem dois cães brincando.
A mulher voltou a olhar para mim. Dei um sorrisinho forçado. Ela olhou para o chefe e nos olhou desconfiada. Tinha ido até lá para mostrar que estava presente e que não poderíamos matar o chefe dela assim, do nada.
Lembrei de Lúcio falando sobre o que fazer com nosso chantagista naquela primeira noite. E se ele voltar a nos chantagear? E ali estávamos nós, sendo chantageados novamente.
E ele tinha ficado com aquele dinheiro todo. Pra quê? será que estava falido? Devendo dinheiro pra algum esquema de corrupção? Eu o olhava tentando ler minhas respostas naquela cara feia de político.
A empregada continuava lá, parada na sala, nos encarando.
─ Sentem-se, vamos conversar. ─disse Lúcio com tom agradável─ Querida, poderia nos trazer um café? Um suco talvez...
─ Sim senhor. ─disse se afastando a contragosto.
Ficamos os três sozinhos.
─ Mariana sumiu, achamos que foi você.
─ Eu? Eu o que?
─ Você a sequestrou. ─falei.
Lúcio falou o que sabíamos. Bruno negou o tempo todo. Estávamos quase no final quando meu celular recebeu uma mensagem: “Desconfiando de quem confiam há tanto tempo? Que feio.”
Fechei os olhos e respirei fundo. Cocei a barba, olhei para os lados... Tive vontade de jogar o celular na parede, mas eu simplesmente entreguei o aparelho para Lúcio.
─ Puta que me pariu... ─murmurou.
Ele mostrou o celular para Bruno, que deu um suspiro.
─ Estão vendo? Não fui eu! Me deve um pedido de desculpas!
─ Você bem que mereceu. ─disse Lúcio─ Mas não temos tempo pra isso. Se não foi você, não sabemos pra onde correr agora.
A empregada de Bruno se aproximou com a bandeja com sucos de laranja ou maracujá ─ eram amarelos. Nos serviu como uma empregada de novela. Ela tinha cabelos pretos e lisos, pele queimada pelo sol. Tinha um corpo relativamente bonito, um pouco mais gorda que Mariana, e um pouco mais alta. Logo ela se retirou.
Bebi o copo de suco num gole só. Era de laranja e era natural. Há quantos anos eu não bebia suco natural? Com aqueles gominhos que ficam presos no dente...
Outra mensagem. “100 mil até meia noite, no mesmo lugar de antes. Ela estará lá.”
Mostrei a nova mensagem para os outros. Bruno se colocou de pé e andou de um lado para o outro murmurando qualquer coisa.
Lúcio me olhou com olhos que refletiam os meus. Não iríamos dar 100 mil a ninguém. Daríamos mais um corpo ao rio. Me levantei.
─ Vamos dar um jeito nisso.
Lúcio se colocou de pé logo em seguida.
─ Como vão conseguir esse dinheiro? ─perguntou Bruno.
─ Vamos dar um jeito. ─disse Lúcio─ Vamos.
Saímos da casa em silêncio. Chegamos à calçada.
─ E agora? ─perguntei.
─ Agora, meu caro... Vamos conversar com alguns amigos meus. Venha.
Subi na moto com ele e saímos dali. A cidade era pequena, mas tinha uma “periferia”. Fomos até lá e deixamos a moto um pouco longe. Fomos andando em silêncio.
Paramos em frente a uma casinha sem graça e Lúcio empurrou a porta. Entramos. Um corredor escuro e cheio de portas. Assustador.
─ Léo, sou eu, o Lúcio! Estou entrando com um amigo, o Eduardo. Preciso que você pague aquele favor.
Um rapaz abriu uma porta do corredor. Era magricela, com uma cara de esquizofrênico. Ele fez um sinal para que entrássemos.
─ Quero uma arma, Léo. Uma leve, rápida, pra poucos tiros a pouco alcance.
O rapaz concordou com a cabeça. Na pouca luz do local (proporcionada apenas por uma televisão e três telas de computadores), eu via que o garoto era ainda mais assustador. O rosto tinha uma tatuagem tribal e os braços tinham cicatrizes enormes.
Ele concordou com a cabeça e saiu da sala.
─ Não pergunte de onde conheço esse cara.
Eu apenas o encarei.
─ Ok, ok... Uma vez a polícia estava atrás dele, há uns três anos... Ele se escondeu na minha casa. Peguei o garoto pela camiseta e provei que se eu quisesse, os policiais iriam pegá-lo. Mas não... Ele me seria útil. Larguei o moleque, dei cobertura... Depois deixei ele ir.
─ Era acusado de que?
─ Assassinato.
Ótimo, agora todo mundo era assassino. O rapaz voltou com uma arma em mãos. Lúcio a pegou na mão, checou a munição e guardou-a na cintura.
─ Obrigado, garoto. Te devolvo amanhã ou depois.
Ele apenas concordou com a cabeça e abriu a porta para que saíssemos. Chegamos à calçada.
Estava de noite. Nós voltamos à moto e passamos no banco 24 horas. Talvez alguém nos observasse. Consultei meu saldo e tive vontade de rir. Eu nunca juntaria aquele dinheiro todo... Nunca.
Lúcio apareceu com uma maleta igual à da noite anterior.
Já passava das nove horas. Passamos no restaurante de Mariana e comemos de graça lá, afinal, os funcionários nos conheciam. Não bebemos uma gota de álcool. Nossos sentidos precisavam estar tão bons quanto há 15 anos.
Bruno me ligou.
─ E aí?
─ Ainda nada, está muito cedo. Mas conseguimos o dinheiro. Vamos deixar tudo lá e rezar para soltarem Mariana.
Não sei porquê, mas eu senti necessidade de mentir para Bruno. Eu ainda não confiava nele. Ele desejou boa sorte e desligou.
Terminamos de comer e saímos do restaurante às 10 da noite. Subi na moto de Lúcio e pegamos aquela estrada maldita. 10:35 estávamos no ponto certo da estrada. Eu desci com a maleta, coloquei-a no mesmo lugar de antes e voltei para a moto.
Nós a deixamos cerca de um quilometro mais longe, no meio do mato. Voltamos andando em silêncio, na mais completa escuridão. Chegamos ao ponto da estrada em que podíamos ver a maleta e lá ficamos, abaixados, no meio do mato, observando.
Eu não podia consultar as horas no celular, então só pude ver as horas depois de tudo – o que era muito tarde. Podemos dizer que esperamos uma hora ou mais.
─ Preciso te dizer algo. ─cochichou Lúcio─ Eu tirei 100 mil do total para pagar minhas dívidas...
Não respondi. Eu já desconfiava daquilo. Me irritei, mas respirei fundo e coloquei a mão no ombro dele.
─ Tudo bem.
Então um carro veio vindo na estrada... Reduziu a velocidade e parou. Uma pessoa desceu de lá, pulou a proteção da estrada e foi pegar a maleta. Lúcio me cutucou o braço e nós fomos.
Senti a mesma coisa de quinze anos antes por alguns instantes, mas depois pensei que aquela pessoa estava com Mariana. Estávamos quase alcançando a pessoa quando ouvimos um tiro vindo do carro.
Me abaixei e Lúcio gritou:
─ Tem mais alguém! ─e deu um tiro em direção ao carro.
Me lembrei que tínhamos pouca munição. Olhei para a primeira pessoa, que fora buscar a maleta. Lúcio tirou algo do bolso e me entregou. Senti o metal gelado nas mãos. Era um canivete.
Eu soube que não era qualquer canivete. Era aquele canivete. O mesmo que rasgou uma garganta há anos atrás. Eu abri a lâmina e corri em direção à pessoa. Pulei sobre a proteção entre as árvores e a estrada e me joguei em cima daquele ser humano.
Senti que a lâmina se enterrava na clavícula da criatura. Caímos os dois no chão. Eu e o corpo da pessoa que ainda estava viva. Tentou se arrastar para longe de mim enquanto rolávamos no chão.
Eu puxei o pé daquele alguém e virei a criatura para mim. Me coloquei em cima do corpo da pessoa e sentei em sua barriga. Era magro e respirava ofegante. Estava com uma toca ninja preta. Por um momento tive dúvida se queria ver o rosto antes de matar ou não. Mais um rosto para me aterrorizar.
Minha decisão foi tomada. Eu não queria mais um rosto me perseguindo. Preferia que fosse qualquer um que um específico. Estava escuro. A única luz vinha do farol do carro, que estava há cerca de dez metros, voltado para a estrada.
Respirei fundo e, no momento seguinte, enterrei a lâmina no pescoço de meu inimigo. Não houve muitos ruídos. Um sufocamento simples e lento, nada mais. Eu não estava nervoso. Minhas mãos não tremiam e nem soavam. 
Outro tiro. Lúcio! Me levantei com o canivete em mãos e corri até o carro. A porta de trás do carro ainda estava aberta. Entrei por ela e me coloquei atrás do motorista enquanto ele fazia mira em Lúcio.
Coloquei as mãos ensanguentadas em volta do pescoço do motorista e o canivete fazendo pressão em sua garganta.
─ Morra. ─murmurei calmamente.
Puxei a faca e senti minhas mãos esquentarem com o líquido expeço que escorria da garganta. A pessoa se engasgou com o próprio sangue e caiu para frente, apertando a buzina. Eu me levantei, segurei os cabelos da nuca da pessoa e notei que era uma mulher.
Fiz seu corpo cair para o lado, e não para frente. Saí do carro e Lúcio veio correndo até mim, visivelmente machucado.
─ Estão mortos. ─falei.
Saí do carro, dei a volta e olhei o corpo. Fiquei surpreso: era a empregada de Bruno. Os cabelos pretos estavam empapados com sangue. Ela estava definitivamente morta. Não poderia deixar o carro e as provas ali... Olhei para fora e vi que o rio me chamava.
Na verdade, não chamava a mim, e sim ao corpo. O certo a fazer seria colocar os dois corpos no carro e jogar tudo no rio. Sequei as mãos em minha camiseta e fui até o outro corpo.
Lúcio estava ajoelhado ao lado do primeiro corpo, em silêncio. Notei que ele tremia muito. Talvez fosse a dor causada pelo ferimento a bala... Me aproximei e reparei que ele tinha tirado a toca ninja do morto.
Não quis, mas mesmo assim olhei. Antes tivesse arrancado meus olhos segundos em vez de fazer essa bobagem.
O corpo era o de Mariana.
Havia uma fita cinza amordaçando sua boca. Seu rosto estava pálido e seus olhos cheios de lágrimas que escorreram e transformaram a maquiagem em uma obra mórbida.
Eu havia feito aquilo.
Caí de joelhos e não sei bem o que fiz depois disso. Sei que chorei como uma criança abraçando o corpo morto dela. O rasgo na garganta não vazava mais sangue, mas eu fiquei encharcado. Minhas roupas estavam tão vermelhas quanto as dela.
Não muito tempo depois Lúcio me dirigiu a palavra.
─ Demos tiros, logo as pessoas chamarão a polícia... ─disse baixo, quase inaudível.
Eu levantei os olhos para ele. A escuridão não parecia mais tão escura... Como eu pude mata-la? Como eu não reconheci seus olhos? Como?
Passei a mão na testa para tirar os cabelos que estavam entrando nos meus olhos. Respirei fundo. Agora eu era o assassino de três pessoas. Olhei para Lúcio e pensei seriamente em mata-lo também e em seguida dar cabo da minha própria vida.
Ele deve ter sentido medo, porque estendeu a mão.
─ Me dê o canivete. Não precisa mais dele agora.
Notei que a lâmina ainda estava nas minhas mãos. Eu abraçava Mariana com a arma do crime ali, encolhida, pressionando sua pele branca e morta.
─ Agora não. ─respondi guardando-a no bolso.
Ele se levantou e estendeu a mão para que eu me levantasse. Foi o que fiz. Estávamos de pé, com o corpo de minha amada entre nós.
─ Vamos jogá-la no rio? ─perguntou Lúcio com o máximo de polidez que fosse possível.
─ Não temos tempo de enterrá-la.
Lúcio concordou com a cabeça. Como naquele ponto da estrada havia uma proteção entre o rio e o asfalto, precisávamos levar o carro um pouco mais para frente.
Pegamos o corpo de Mariana e o colocamos no banco de trás do carro. Eu me propus a dirigir. Empurrei o corpo da empregada de Bruno para o lado e me sentei no banco.
O sangue de minha terceira vítima esfriava no banco. Dei a partida e Lúcio se pendurou do lado de fora, em cima do para-choque. Estava ferido, não conseguiria andar até a moto.
Passei os olhos pelo carro e vi uma maleta. Abri e vi o dinheiro. O nosso dinheiro. Aquelas porcarias de papel.
Um quilômetro depois eu já tinha elaborado a teoria sobre porque a mulher ao meu lado era nossa chantagista. Bruno, aquele idiota, deveria ter falado com Mariana no telefone sobre o ocorrido de 15 anos atrás, ou escrito em um diário... De alguma maneira, a mulher ficou sabendo.
Ela pesquisou o caso na delegacia da cidade, descobriu quem éramos... Só que sua pesquisa despertou a curiosidade do delegado. Ele, ao contrário dela, era burro. Ela decidiu nos chantagear. Vadia.
Chegamos ao ponto em que a moto estava. Parei e Lúcio desceu. Ele estava se aproximando da janela do motorista quando tomei uma decisão importante. Peguei a maleta de dinheiro e joguei-a para fora. Pelo retrovisor, olhei uma última vez para meu amigo.
Acelerei o carro em direção ao rio. Ouvi os gritos dele logo antes do carro sair da estrada, passar alguns metros entre as árvores e finalmente... O rio.
O baque de quando o carro caiu na água pode ser comparado a uma batida normal de carro. Eu estava sem cinto, então bati o rosto no volante. Não desmaiei como uma cena de cinema pedia.
A água começou a entrar no carro com uma velocidade incrível. Olhei para trás, vi o rosto branco de Mariana. Era com essa lembrança que eu terminaria aquela vida.
A água batia em meu pescoço. Ainda ouvia os gritos de Lúcio lá fora. Puxei o ar para os pulmões e deixei a água inundar o carro.
Era um renascimento.
A escuridão meu pai, a água gelada, minha mãe. Por breves momentos eu fiquei com os olhos fechados, ouvindo o som ensurdecedor que a situação proporcionava. Eu não era mais Eduardo, eu era um assassino.
Abri a porta do carro e saí nadando do veículo. A correnteza puxava a lataria com força. O som do ferro batendo nas pedras me acalmou: ninguém acharia aquilo tão cedo.
Já fora do carro, subi à superfície. O ar inundou meus pulmões e eu me senti vivo. Óh Deus! Foi a primeira vez que me senti vivo de verdade. Olhei para as margens. Eu já estava longe de meu amigo. Nadei a favor da correnteza sem medo de me chocar com um galho, uma pedra ou um carro.
Algum tempo depois eu estava numa parte mais lenta do rio. Me dirigi à margem e deitei no chão de terra. Eu tremia de frio, mas fiquei parado, recuperando o fôlego e olhando para o céu.
A lua brilhava timidamente. Era minha cúmplice. Silenciosa, muda. Coloquei as mãos nos bolsos e senti duas coisas: o celular e o canivete. O celular não era necessário. Joguei-o na beira do rio e lá ele ficou.
Já o canivete...
Me levantei quando minha respiração voltou ao normal. Caminhei pela estrada algum tempo e então vi uma casinha. Fui me aproximando silenciosamente e achei um varal cheio de roupas secando.
Entrei no quintal da casa, tirei minhas roupas molhadas e me vesti com as opções do varal. Faltava-me um calçado e dinheiro.
Circundei a casa, achei uma janela aberta na sala (coisas de cidades do interior, meus caros) e entrei. Meus pés descalços sentiram o tapete da sala como se fosse uma coisa nova. Caminhei pela casa na escuridão, mas logo achei um par de chinelos. Fui até a cozinha, bebi água da torneira e, por graça do Destino, achei uma carteira em cima da mesa, iluminada pela pouca luz da lua. Aquela pilantra queria me ver roubando.
A carteira tinha pouco, mas era melhor que nada. Coloquei o dinheiro em meu bolso seco e voltei para a estrada.

Dois dias depois ocorreram os enterros. Cidade pequena é uma merda. Meio mundo estava chorando por mim e Mariana. Meus pais estavam aos cacos, vestidos de preto e em silêncio.
Eu sei porque eu vi. Fui até meu próprio enterro e ouvi Lúcio contar sobre como eu havia sido um herói ao dar minha própria vida na tentativa de salvar Mariana e a outra moça. Segundo a ótima história de meu amigo, nós quatro havíamos sido atacados por um grupo de assaltantes e ele, Lúcio, havia sido covarde o suficiente para se jogar do carro em movimento e ainda levar um tiro.
As pessoas acreditaram.
A polícia acreditou.
Como há 15 anos.

Não havia caixões porque os corpos não foram encontrados. Não esperei o final de cerimônia. Dei às costas à minha lápide e sumi na primeira esquina. 



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