Ela tinha esquecido seus fones de ouvido em casa. Lamentava
por sua falta de memória. O som em seus ouvidos distraía sua mente, evitava que
pensasse em seus problemas.
Mas, naquela tarde, ela não tinha escapatória. Com os olhos
perdidos na janela, ela questionava o valor de sua vida. E se nunca voltasse
pra casa naquele dia?
O que o mundo perderia se ela parasse de respirar antes do
sol se esconder no horizonte? Era apenas uma gota d’água no horizonte, ninguém
daria falta. Passou a mão nos cabelos, tentando afastar a franja dos olhos.
Precisava se decidir logo.
Os pais tão ausentes, os amigos tão ocupados, e ele... Bem... Ele a deixara há algumas
semanas e ainda se pegava chorando por sua ausência. Estava sozinha, por todos
os lados.
O ônibus parou em um ponto e um senhorzinho subiu. Tinha
cabelos grisalhos e uma boina amarronzada na cabeça. Usava óculos e apoiava-se
em uma bengala.
Ele se sentou ao lado dela e lançou um sorriso.
─ Boa tarde.
Ela respondeu um meneio com a cabeça. Ficaram em silêncio
algum tempo.
─ Você não parece muito feliz.
Ela piscou algumas vezes e olhou o senhorzinho. Ele deveria
ter visto a Segunda Guerra e tinha várias rugas no rosto, mas os olhos
demostravam jovialidade. Eram de um azul que lembrava o mar. Ah, o mar...
Ela não respondeu. Talvez tivesse imaginado o senhor falar
aquilo... Talvez ele tivesse falando com outra pessoa... Mas não. Ele estava
falando com ela... Vendo sua alma com aquele par de olhos de mar.
─ Não deveria ter pensamentos ruins, moça. Vejo seu
potencial, posso ver a grande pessoa que você se tornará... Mas quando pensa
desse jeito, tão... negativo, minha visão fica turva e não posso ter mais tanta
certeza de que cumprirá seu destino.
Ela estava tão perplexa para responder que apenas ficou
olhando-o. Não era o tipo de coisa para se falar a uma desconhecida no ônibus.
Aquele velho deveria estar ficando muito doido. Alguém estava vendo..?
─ Não, minha jovem. Eu vim falar com você, não com eles.
Ela deveria gritar por ajuda, levantar e sair correndo...
Mas algo nele fazia com que o mundo parecesse mais calmo. Talvez os olhos,
talvez a suavidade da voz do senhorzinho...
─ Mas... Qual a importância?
─ Não seja egoísta, criança. Seus pais te deram a vida,
cuidaram de você, investiram tempo e dinheiro. Seu irmão, por mais que briguem,
sabe que ele te admira. Seus amigos... Quer vê-los chorando em seu velório?
Ela não quis saber como veria
alguém chorando em seu velório se estaria morta. Só então notara no ritmo
que o senhorzinho tinha um ritmo forte al falar. O tom de sua voz poderia ser
idoso, mas as poucas pausas e a fala muito bem coordenada.
Ele sorriu.
─ O mundo, criança, é mais do que isso. Se não está feliz
agora, eu só posso lamentar. Mas não posso deixar que você acabe com a
felicidade de mais uma dúzia de pessoas assim, por covardia.
─ Não é covardia...!
─ É medo de lutar e perder. Criança, escute... A vida é
isso: lutar. Contra os outros ou contra nós mesmos... Suas maiores batalhas
ainda estão longe, e você já está fraquejando!
Ele colocou a mão no ombro dela.
─ Seja forte, criança. O mundo vai piorar, mas precisa
lutar... e mais que isso: você precisa ganhar.
Ele se levantou e deu um último sorriso bondoso.
─ Não está sozinha.
Então sua visão escureceu e no momento seguinte notou que
estivera dormindo. Olhou ao redor, o senhorzinho não estava mais lá. O banco ao
seu lado estava vazio, o ônibus em movimento...
Fosse ou não verdade, seja lá o que fosse aquele velhinho, o
fato é que falara verdades. Voltou a olhar para a rua e assustou-se. O
senhorzinho estava parado, na calçada, olhando para ela.
Ela não teve certeza, mas o reflexo na janela pareceu formar
algo em torno do senhorzinho, por breves segundos, mas pareciam... asas.
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