II
O fim de
carreira
Era em
manhãs como aquela que eu me perguntava se era aquilo o que eu queria para
minha vida. Havia passado algumas semanas desde o ocorrido no metrô.
Eu
continuava morando naquele apartamento. Acordei logo cedo um barulho alto que ecoou
pelo chão. Parecia que alguém tinha derrubado uma pilha de panelas no chão. Parecia
que eu não tinha dormido nada...
Eram oito da
manhã. Ok, não era tão cedo assim,
mas para alguém que estuda de segunda à sexta, o mínimo que se espera é que se
possa dormir até às onze... Mas não. Naquele apartamento era difícil ter uma
rotina normal.
Cheguei à
sala e encontrei-a sentada em sua poltrona, com uma pequena quantidade de
ferramentas em cima da mesa de centro. Ela mexia em algo pequeno, mas cheio de
fios.
─ Desculpe.
Escapou da minha mão. ─disse ela apontando para uma caixa de papelão com alguma
coisa dentro.
Mariana era
uma pessoa de difícil convivência. Você não está entendendo... Ela era muito difícil. Eu a conhecia bem, tenho
certeza de que ela jamais deixaria aquele negócio cair sem querer.
Ela tinha me
acordado... de propósito.
─ Você
poderia ir à padaria, né... ─disse ela mexendo nos fios com toda a atenção do
mundo.
Eu sabia que
tinha um motivo para ela ter me acordado. Alguém precisava comprar comida, e
ela não sairia dali tão cedo. Nossa dispensa contava com bolachas, café e
macarrão instantâneo basicamente.
Troquei de
roupa, coloquei o café pra fazer e fui comprar seis pãezinhos na padaria.
Quando voltei o cheiro de café já tinha chegado à sala. Coloquei a toalha de
mesa e tirei a manteiga da geladeira.
Mariana
entrou na cozinha e colocou meia xícara de café.
─ O que está
fazendo? ─perguntei.
─ Uma
gambiarra com meu microfone. O fio estava todo quebrado, agora estou usando o
fio do seu fone de ouvido.
─ Do meu fone de ouvido?! Por que?
─ Porque é o
que estava mais perto de mim.
Eu respirei
fundo... Contei até 10...
Mariana
tinha cabelos castanhos ondulados e olhos de mesma cor. Era branca, mas por não
gostar de sol, se tornava cada dia mais pálida. As veias por muitas vezes estariam
num tom entre azul e cinza.
Passava dia
e noite descalça pela casa, andando em silêncio e me assustando sempre que
possível. Desde que eu me mudara pra lá eu havia descoberto que meu coração é
muito forte.
Logo Mariana
terminou a faculdade e seus dias passavam-se de forma metódica... Sentada em
sua poltrona o dia todo, só saía dali para o trabalho. Uma ou duas vezes por
semana ela saía para “caçar” as notícias. Saia e não voltava num horário
preciso.
Às vezes voltava
horas depois, às vezes voltava dias depois. Eu me preocupava, é verdade. Mas
nada superava a curiosidade que eu tinha sobre aquilo.
─ Assim que
eu terminar de arrumar aquilo vou sair. ─disse ela terminando o café.
─ Mas é
sábado!
─ Eu sei.
Você vai ficar em casa, né?
Antes que eu
pudesse responder ela continuou:
─ ...Precisa
ir ao mercado. Nossa geladeira está mais vazia do que a fábrica de brinquedos
do Papai Noel no dia 26 de dezembro.
─ Ok, mas
você vai fazer o jantar.
Ela não era
a melhor cozinheira do mundo. Eu, não me gabando, cozinhava muito melhor do que
ela. Mas era injusto que eu fizesse tudo sozinha ali. Ela apenas concordou com
a cabeça e deixou a xícara vazia dentro da pia.
Poucos
minutos depois ouvi o barulho da porta abrindo.
─ To indo!
─disse ela saindo.
Dali ela só
voltou quando já era noite. Veio com uma das maiores caixas do Habib’s. Ela
tirou os tênis e deixou-os no canto da sala, como sempre. Largou a mochila logo
ao lado e olhou para mim. Eu apenas sorri. Eu sempre gostei das esfihas de lá.
Ela colocou
a caixa na mesa de centro da sala e foi até a cozinha pegar um pacote de
guardanapos.
─ Como foi o
dia? ─perguntei.
─ Inútil.
─ Por que?
─ Fui ouvir
uma confissão... nem entrei no escritório. A secretária era um porre. Tenho que
voltar lá amanhã... Provavelmente vou dar com a cara na porta mais uma vez.
Eu não disse
nada. Eu sabia que aquilo não era a verdade. A essência da coisa poderia até
ser... Mas não estava nas palavras certas. Eu encarei a televisão.
─ Por que
não me fala o que faz da vida? Eu acho que eu deveria saber... Primeiro aquela
história de você aparecer na minha casa do nada, depois magicamente achou esse
apartamento... Tem também aquela história do metrô que nunca ficou clara...! E
agora você vai trabalhar e volta mega tarde... O que está fazendo, Mariana?
─ E se eu
estiver envolvida em atividades ilegais e alguém vier aqui tirar satisfações
com você? Não posso sair falando tudo.
─ Se eu
disser que não sei, não iriam acreditar.
─ Não, não
iriam. ─ disse ela rindo.
Não
respondi. Eu sabia que ela odiava aquilo. Ao contrário da maioria das pessoas,
ela gostava de argumentos... Ela
viveria a eternidade para dar a ultima palavra sobre alguma coisa... Mas eu
sabia como tortura-la: Silêncio.
─ Quer ir
amanhã? Você vai ver que não faço nada tão legal assim. É bobo.
Não quis
demonstrar, mas aquele foi meu triunfo.
Na manhã
seguinte eu acordei com Mariana abrindo as janelas do meu quarto e deixando a
luz do sol entrar.
─ Agh...
─resmunguei fechando os olhos com força─ Que jeito bom de começar o dia.
─ Se você
não se acostumar às mudanças bruscas de luminosidade, seus filhos vão ser mais
fracos ainda. Você não quer crianças-morcego, quer? Imagine-os fazendo aqueles
barulhinhos chatos pela casa... Imagine um monte de criança correndo pela casa
no meio da madrugada...
─ Nossa,
cala a boca Mariana. Logo de manhã você me acorda falando essas drogas?
Ela riu.
─ Vamos, fiz
café.
Saímos de
casa em quinze minutos. Eu tinha um carro popular, quase caindo aos pedaços...
Meus pais haviam me presenteado com ele. Tinha um valor sentimental. Mariana
tinha uma moto, também não muito boa. Ela me indicou o caminho e fomos indo
pelo trânsito infernal de nossa querida São Paulo.
Demoramos um
pouco para chegar, mas enfim estávamos lá. Era a prefeitura. Ela fez um sinal para que eu fosse com ela. Atravessamos a rua e entramos no
prédio.
Havia uma
pequena recepção.
─ Ah, você
voltou... ─disse a recepcionista.
─ Eu disse
que voltaria. E hoje vim com mais gente. Amanhã virei com três, depois quatro,
cinco...
A mulher
encarou Mariana e então bufou.
─ Ele acabou
de chegar. Podem subir, mas não demore muito.
Segui
Mariana e entramos no elevador. Só tinha um andar acima, mas mesmo assim fomos
de elevador.
─ Ontem
fiquei o dia todo ali na recepção, parada. Hoje achei que seria igual... Mas
parece que alguém tem pé quente aqui.
Eu ri.
─ Poderíamos
instalar um elevador desses lá em casa, né?
─ Com que
dinheiro? ─sorriu.
As portas se
abriram. Nós saímos e ouvimos nada mais que o silêncio. Seguimos pelo corredor
e paramos em frente à sala do tal cara. Ela respirou fundo, apertou um botão no
celular que estava no bolso e arrumou o fio do meu fone de ouvido na beira do bolso.
─ Espere
aqui fora. ─disse ela quase inaudível.
Concordei e
dei um passo para o lado, onde ele não pudesse me ver. Encostei-me na parede
enquanto ela batia na porta.
Silêncio,
ninguém respondeu. Ela bateu novamente e abriu a porta lentamente.
─ Boa dia,
senhor... ─disse.
Então ela
empurrou a porta com toda a força e correu para dentro. Um ato tão inusitado
que, além de me assustar, também me fez correr até o batente e olhar para
dentro da sala.
Havia um
homem no chão. Mariana ajoelhou-se ao lado do homem e levou a mão ao pescoço do
homem inerte.
─ Não acho o
pulso...! ─disse nervosamente─ Chama uma ambulância!
No mesmo
momento tirei o celular do bolso e disquei para o serviço de emergências. A voz
calma do atendente irritava. Eu disse onde estávamos e o que tinha acontecido,
ou seja, eu só disse que o cara estava no chão.
Desliguei o
celular e daí então fui analisar a coisa como um todo. O homem estava caído,
aparentava ter uns 45 ou 50 anos. Terno e gravata.
Ela
levantou-se e discou no telefone o único ramal anotado ali: 9, a secretária.
Mariana pediu que a moça subisse. Segundos depois ela estava lá em cima, aos
berros:
─ O que
vocês fizeram com ele?
Ela
abaixou-se para tentar acordá-lo ou algo do tipo, mas Mariana a reprendeu antes
que ela o tocasse.
─ Está
morto, se é o que quer saber.
A moça deu
quase um pulo para trás, soltou um som de horror.
─... E não,
não fomos nós quem o matamos. ─concluiu.
Eu estava
parada no canto, visivelmente impressionada com a situação. Mariana tirou o
celular do bolso e logo o levou à orelha.
─ Gregório!
Manda alguém pro gabinete do prefeito... O cara morreu. Não, não sei o que
aconteceu... Cheguei aqui e ele estava no chão. Não mexi em nada, relaxe... Já
chamei a ambulância também. Ok.
Desligou.
Ficamos as três em silêncio algum tempo.
Em toda a
minha vida eu havia visto muitos corpos no laboratório. Mas nenhum deles tinha
sido daquele jeito... fresco. Todos os que eu já vira estavam em cima de
bancadas ou vidros.
Aquele era
diferente. Ainda estava com as bochechas rosadas, parecia que estava desmaiado,
mas ainda vivo. Mariana colocou as mãos na cintura e em seguida esfregou o
rosto com força, visivelmente tinha tido seus planos frustrados naquela manhã.
Acho que era
a primeira pessoa morta que Mariana via tão de perto, ao vivo e a cores.
─ Vamos
descer.
Descemos as
três em silêncio. Bem, a secretária não estava bem em silêncio... Ela chorava
sem escândalo, mas ouvíamos a respiração aflita que o choro causa.
Ficamos na
porta do lugar. Silêncio cortado apenas pela chorona, e alguns instantes
depois, pelo som das sirenes. A ambulância, e em menos de um minuto, a polícia.
Mariana
explicou aos policiais o que aconteceu, e concordamos ─as três─ de irmos até a
delegacia dar nosso depoimento. Eu sentia como se os policiais pensassem que
éramos assassinas.
Eles nos
olhavam de uma maneira soberba, como se eles fossem os donos da situação.
Faziam as perguntas sabendo quais seriam as respostas. Aquela algazarra toda
porque o morto era um político, se fosse um zé-ninguém eles nem tinham nos
levado até a delegacia.
Mariana
assumiu as rédeas das coisas. Ficou um bom tempo conversando com o delegado
─Gregório─ e eu podia vê-la de tempos em tempos, quando alguém abria a porta da
sala do chefe.
Não estavam
tendo uma conversinha boba entre amigos. Debatiam algo firmemente.
Um bom tempo
depois ela saiu e parou em minha frente a mim. Olhou ao redor. A secretária do
político morto estava bebendo água.
─ Vamos,
estou com fome.
Passamos
pela secretária do defunto e demos um tchau formal. Saímos em silêncio e
passamos numa padaria. Pedimos um salgado e uma lata de refrigerante cada.
─ O que acha
que aconteceu lá? ─perguntei.
─ Foi
assunto pessoal. Nada relacionado à política.
─ Por que
acha isso?
─ Ontem eu
fiquei lá o dia todo, plantada feito uma idiota. Se fosse um profissional, não
mataria o cara com uma jornalista rondando o lugar. Seria burrice.
─ Ah, falou
a investigação criminal do CSI.
Ela me
encarou um segundo.
─ E que
perigo você representaria ao possível assassino? ─expliquei.
─
Jornalistas descobrem as coisas e colocam no jornal. As pessoas vão ler aquilo.
Se fosse intriga da oposição e eu suspeitasse de uma coisinha mínima, isso se
tornaria uma bola de neve até...
─ Mas, ─eu a
interrompi─ e se o assassino não tivesse visto você lá ontem? E outra: Como o
mataram? Não tinha sangue nem nada. Como o cara matou o outro?
─ Não sei. O
corpo foi para a autópsia... O resto é com a polícia.
Na manhã
seguinte Gregório ligou. Disse que o homem havia morrido de um ataque do coração.
Foi o tipo
de coisa que podemos chamar de azar (ou sorte, depende do ponto de vista).
Estar lá exatamente naquele momento... Naquele dia... Ao menos foi o que chegou
aos nossos ouvidos, e o que a impressa publicou. Mariana teve sua teoria de
“assassino pessoal” contrariada, então fazia dúzias de teorias de conspiração
com aquele fato, mas isso não importa, porque elas nunca foram provadas.
As notícias
logo estavam nos jornais e nos sites. Mariana contorceu-se em sua poltrona. As
outras mídias foram mais rápidas do que ela... Gregório havia demorado muito
para nos dizer o que tinha acontecido.
O telefone
tocou novamente uns 15 minutos depois. Mariana atendeu.
─ Alô?
Um longo
momento de silêncio veio depois disso. Mariana não falava nada. Abriu a boca
várias vezes para dizer algo, mas continha-se. Eu podia ouvir alguém
esbravejando do outro lado da linha...
Então ela
encerrou a chamada. Passou as mãos nos cabelos e então me encarou.
─ Fui
despedida.
─ Por que?!
─ Porque eu
estava do lado da notícia e não tive a capacidade de informar os fatos ao
jornal antes dos outros.
─ Mas o
Gregório acabou de ligar...! Não tinha como você saber!
─ Diga isso
ao meu chefe... Ou melhor: Ex-chefe.
Ela
levantou-se de sua poltrona, fechou a tampa do notebook e deu uma volta pela
casa. Foi até seu quarto e pegou uma blusa. Abriu a porta de casa e voltou-se a
mim:
─ Volto
logo.
Bateu a
porta e eu ouvi seus passos descendo as escadas rapidamente. Bateu a porta de
baixo e se foi.
Voltou
quando já estava de noite com uma caixa de pizza em mãos. Colocou-a em cima da
mesa e respirou fundo.
─ Vão ser
tempos difíceis. Aproveite a pizza... Não sei se vamos poder esbanjar dinheiro
nas próximas semanas.
Um momento
de silêncio.
─ Ele ferrou
meu nome como jornalista. Arrumar outro emprego agora vai ser uma questão de tempo
e sorte... E com a sorte que estamos tendo ultimamente...
Naquele
momento desejei profundamente voltar para a casa dos meus pais, com comidinha
caseira todos os dias... Sem problemas... Não podia abandonar Mariana no
primeiro momento de dificuldade. Deixaria a água chegar ao pescoço antes de
abandonar o navio.
Achei bom mas meio bobo.. Poderia ter ficado mais emocionante, o outro estava melhor
ResponderExcluirVocê tem mais potencial. Faltou tempero.
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