quarta-feira, 14 de novembro de 2012

II - Fim de Carreira


II
O fim de carreira


Era em manhãs como aquela que eu me perguntava se era aquilo o que eu queria para minha vida. Havia passado algumas semanas desde o ocorrido no metrô.
Eu continuava morando naquele apartamento. Acordei logo cedo um barulho alto que ecoou pelo chão. Parecia que alguém tinha derrubado uma pilha de panelas no chão. Parecia que eu não tinha dormido nada...  
Eram oito da manhã. Ok, não era tão cedo assim, mas para alguém que estuda de segunda à sexta, o mínimo que se espera é que se possa dormir até às onze... Mas não. Naquele apartamento era difícil ter uma rotina normal.



Cheguei à sala e encontrei-a sentada em sua poltrona, com uma pequena quantidade de ferramentas em cima da mesa de centro. Ela mexia em algo pequeno, mas cheio de fios.
─ Desculpe. Escapou da minha mão. ─disse ela apontando para uma caixa de papelão com alguma coisa dentro.
Mariana era uma pessoa de difícil convivência. Você não está entendendo... Ela era muito difícil. Eu a conhecia bem, tenho certeza de que ela jamais deixaria aquele negócio cair sem querer.
Ela tinha me acordado... de propósito.
─ Você poderia ir à padaria, né... ─disse ela mexendo nos fios com toda a atenção do mundo.
Eu sabia que tinha um motivo para ela ter me acordado. Alguém precisava comprar comida, e ela não sairia dali tão cedo. Nossa dispensa contava com bolachas, café e macarrão instantâneo basicamente.
Troquei de roupa, coloquei o café pra fazer e fui comprar seis pãezinhos na padaria. Quando voltei o cheiro de café já tinha chegado à sala. Coloquei a toalha de mesa e tirei a manteiga da geladeira.
Mariana entrou na cozinha e colocou meia xícara de café.
─ O que está fazendo? ─perguntei.
─ Uma gambiarra com meu microfone. O fio estava todo quebrado, agora estou usando o fio do seu fone de ouvido.
─ Do meu fone de ouvido?! Por que?
─ Porque é o que estava mais perto de mim.
Eu respirei fundo... Contei até 10...
Mariana tinha cabelos castanhos ondulados e olhos de mesma cor. Era branca, mas por não gostar de sol, se tornava cada dia mais pálida. As veias por muitas vezes estariam num tom entre azul e cinza.
Passava dia e noite descalça pela casa, andando em silêncio e me assustando sempre que possível. Desde que eu me mudara pra lá eu havia descoberto que meu coração é muito forte.

Logo Mariana terminou a faculdade e seus dias passavam-se de forma metódica... Sentada em sua poltrona o dia todo, só saía dali para o trabalho. Uma ou duas vezes por semana ela saía para “caçar” as notícias. Saia e não voltava num horário preciso.
Às vezes voltava horas depois, às vezes voltava dias depois. Eu me preocupava, é verdade. Mas nada superava a curiosidade que eu tinha sobre aquilo.
─ Assim que eu terminar de arrumar aquilo vou sair. ─disse ela terminando o café.
─ Mas é sábado!
─ Eu sei. Você vai ficar em casa, né?
Antes que eu pudesse responder ela continuou:
─ ...Precisa ir ao mercado. Nossa geladeira está mais vazia do que a fábrica de brinquedos do Papai Noel no dia 26 de dezembro.
─ Ok, mas você vai fazer o jantar.
Ela não era a melhor cozinheira do mundo. Eu, não me gabando, cozinhava muito melhor do que ela. Mas era injusto que eu fizesse tudo sozinha ali. Ela apenas concordou com a cabeça e deixou a xícara vazia dentro da pia.
Poucos minutos depois ouvi o barulho da porta abrindo.
─ To indo! ─disse ela saindo.
Dali ela só voltou quando já era noite. Veio com uma das maiores caixas do Habib’s. Ela tirou os tênis e deixou-os no canto da sala, como sempre. Largou a mochila logo ao lado e olhou para mim. Eu apenas sorri. Eu sempre gostei das esfihas de lá.
Ela colocou a caixa na mesa de centro da sala e foi até a cozinha pegar um pacote de guardanapos.
─ Como foi o dia? ─perguntei.
─ Inútil.
─ Por que?
─ Fui ouvir uma confissão... nem entrei no escritório. A secretária era um porre. Tenho que voltar lá amanhã... Provavelmente vou dar com a cara na porta mais uma vez.
Eu não disse nada. Eu sabia que aquilo não era a verdade. A essência da coisa poderia até ser... Mas não estava nas palavras certas. Eu encarei a televisão.
─ Por que não me fala o que faz da vida? Eu acho que eu deveria saber... Primeiro aquela história de você aparecer na minha casa do nada, depois magicamente achou esse apartamento... Tem também aquela história do metrô que nunca ficou clara...! E agora você vai trabalhar e volta mega tarde... O que está fazendo, Mariana?
─ E se eu estiver envolvida em atividades ilegais e alguém vier aqui tirar satisfações com você? Não posso sair falando tudo.
─ Se eu disser que não sei, não iriam acreditar.
─ Não, não iriam. ─ disse ela rindo.
Não respondi. Eu sabia que ela odiava aquilo. Ao contrário da maioria das pessoas, ela gostava de argumentos... Ela viveria a eternidade para dar a ultima palavra sobre alguma coisa... Mas eu sabia como tortura-la: Silêncio.
─ Quer ir amanhã? Você vai ver que não faço nada tão legal assim. É bobo.
Não quis demonstrar, mas aquele foi meu triunfo.

Na manhã seguinte eu acordei com Mariana abrindo as janelas do meu quarto e deixando a luz do sol entrar.
─ Agh... ─resmunguei fechando os olhos com força─ Que jeito bom de começar o dia.
─ Se você não se acostumar às mudanças bruscas de luminosidade, seus filhos vão ser mais fracos ainda. Você não quer crianças-morcego, quer? Imagine-os fazendo aqueles barulhinhos chatos pela casa... Imagine um monte de criança correndo pela casa no meio da madrugada...
─ Nossa, cala a boca Mariana. Logo de manhã você me acorda falando essas drogas?
Ela riu.
─ Vamos, fiz café.

Saímos de casa em quinze minutos. Eu tinha um carro popular, quase caindo aos pedaços... Meus pais haviam me presenteado com ele. Tinha um valor sentimental. Mariana tinha uma moto, também não muito boa. Ela me indicou o caminho e fomos indo pelo trânsito infernal de nossa querida São Paulo.


Demoramos um pouco para chegar, mas enfim estávamos lá. Era a prefeitura. Ela fez um sinal para que eu fosse com ela. Atravessamos a rua e entramos no prédio.
Havia uma pequena recepção.
─ Ah, você voltou... ─disse a recepcionista.
─ Eu disse que voltaria. E hoje vim com mais gente. Amanhã virei com três, depois quatro, cinco...
A mulher encarou Mariana e então bufou.
─ Ele acabou de chegar. Podem subir, mas não demore muito.
Segui Mariana e entramos no elevador. Só tinha um andar acima, mas mesmo assim fomos de elevador.
─ Ontem fiquei o dia todo ali na recepção, parada. Hoje achei que seria igual... Mas parece que alguém tem pé quente aqui.
Eu ri.
─ Poderíamos instalar um elevador desses lá em casa, né?
─ Com que dinheiro? ─sorriu.
As portas se abriram. Nós saímos e ouvimos nada mais que o silêncio. Seguimos pelo corredor e paramos em frente à sala do tal cara. Ela respirou fundo, apertou um botão no celular que estava no bolso e arrumou o fio do meu fone de ouvido na beira do bolso.
─ Espere aqui fora. ─disse ela quase inaudível.
Concordei e dei um passo para o lado, onde ele não pudesse me ver. Encostei-me na parede enquanto ela batia na porta.
Silêncio, ninguém respondeu. Ela bateu novamente e abriu a porta lentamente.
─ Boa dia, senhor... ─disse.
Então ela empurrou a porta com toda a força e correu para dentro. Um ato tão inusitado que, além de me assustar, também me fez correr até o batente e olhar para dentro da sala.
Havia um homem no chão. Mariana ajoelhou-se ao lado do homem e levou a mão ao pescoço do homem inerte.
─ Não acho o pulso...! ─disse nervosamente─ Chama uma ambulância!
No mesmo momento tirei o celular do bolso e disquei para o serviço de emergências. A voz calma do atendente irritava. Eu disse onde estávamos e o que tinha acontecido, ou seja, eu só disse que o cara estava no chão.
Desliguei o celular e daí então fui analisar a coisa como um todo. O homem estava caído, aparentava ter uns 45 ou 50 anos. Terno e gravata.
Ela levantou-se e discou no telefone o único ramal anotado ali: 9, a secretária. Mariana pediu que a moça subisse. Segundos depois ela estava lá em cima, aos berros:
─ O que vocês fizeram com ele?
Ela abaixou-se para tentar acordá-lo ou algo do tipo, mas Mariana a reprendeu antes que ela o tocasse.
─ Está morto, se é o que quer saber.
A moça deu quase um pulo para trás, soltou um som de horror.
─... E não, não fomos nós quem o matamos. ─concluiu.
Eu estava parada no canto, visivelmente impressionada com a situação. Mariana tirou o celular do bolso e logo o levou à orelha.
─ Gregório! Manda alguém pro gabinete do prefeito... O cara morreu. Não, não sei o que aconteceu... Cheguei aqui e ele estava no chão. Não mexi em nada, relaxe... Já chamei a ambulância também. Ok.
Desligou. Ficamos as três em silêncio algum tempo.
Em toda a minha vida eu havia visto muitos corpos no laboratório. Mas nenhum deles tinha sido daquele jeito... fresco. Todos os que eu já vira estavam em cima de bancadas ou vidros.  
Aquele era diferente. Ainda estava com as bochechas rosadas, parecia que estava desmaiado, mas ainda vivo. Mariana colocou as mãos na cintura e em seguida esfregou o rosto com força, visivelmente tinha tido seus planos frustrados naquela manhã.
Acho que era a primeira pessoa morta que Mariana via tão de perto, ao vivo e a cores.
─ Vamos descer.
Descemos as três em silêncio. Bem, a secretária não estava bem em silêncio... Ela chorava sem escândalo, mas ouvíamos a respiração aflita que o choro causa.
Ficamos na porta do lugar. Silêncio cortado apenas pela chorona, e alguns instantes depois, pelo som das sirenes. A ambulância, e em menos de um minuto, a polícia.
Mariana explicou aos policiais o que aconteceu, e concordamos ─as três─ de irmos até a delegacia dar nosso depoimento. Eu sentia como se os policiais pensassem que éramos assassinas.
Eles nos olhavam de uma maneira soberba, como se eles fossem os donos da situação. Faziam as perguntas sabendo quais seriam as respostas. Aquela algazarra toda porque o morto era um político, se fosse um zé-ninguém eles nem tinham nos levado até a delegacia.
Mariana assumiu as rédeas das coisas. Ficou um bom tempo conversando com o delegado ─Gregório─ e eu podia vê-la de tempos em tempos, quando alguém abria a porta da sala do chefe.
Não estavam tendo uma conversinha boba entre amigos. Debatiam algo firmemente.
Um bom tempo depois ela saiu e parou em minha frente a mim. Olhou ao redor. A secretária do político morto estava bebendo água.
─ Vamos, estou com fome.
Passamos pela secretária do defunto e demos um tchau formal. Saímos em silêncio e passamos numa padaria. Pedimos um salgado e uma lata de refrigerante cada.
─ O que acha que aconteceu lá? ─perguntei.
─ Foi assunto pessoal. Nada relacionado à política.
─ Por que acha isso?
─ Ontem eu fiquei lá o dia todo, plantada feito uma idiota. Se fosse um profissional, não mataria o cara com uma jornalista rondando o lugar. Seria burrice.
─ Ah, falou a investigação criminal do CSI.
Ela me encarou um segundo.
─ E que perigo você representaria ao possível assassino? ─expliquei.
─ Jornalistas descobrem as coisas e colocam no jornal. As pessoas vão ler aquilo. Se fosse intriga da oposição e eu suspeitasse de uma coisinha mínima, isso se tornaria uma bola de neve até...
─ Mas, ─eu a interrompi─ e se o assassino não tivesse visto você lá ontem? E outra: Como o mataram? Não tinha sangue nem nada. Como o cara matou o outro?
─ Não sei. O corpo foi para a autópsia... O resto é com a polícia.

Na manhã seguinte Gregório ligou. Disse que o homem havia morrido de um ataque do coração.
Foi o tipo de coisa que podemos chamar de azar (ou sorte, depende do ponto de vista). Estar lá exatamente naquele momento... Naquele dia... Ao menos foi o que chegou aos nossos ouvidos, e o que a impressa publicou. Mariana teve sua teoria de “assassino pessoal” contrariada, então fazia dúzias de teorias de conspiração com aquele fato, mas isso não importa, porque elas nunca foram provadas.
As notícias logo estavam nos jornais e nos sites. Mariana contorceu-se em sua poltrona. As outras mídias foram mais rápidas do que ela... Gregório havia demorado muito para nos dizer o que tinha acontecido.

O telefone tocou novamente uns 15 minutos depois. Mariana atendeu.
─ Alô?
Um longo momento de silêncio veio depois disso. Mariana não falava nada. Abriu a boca várias vezes para dizer algo, mas continha-se. Eu podia ouvir alguém esbravejando do outro lado da linha...
Então ela encerrou a chamada. Passou as mãos nos cabelos e então me encarou.
─ Fui despedida.
─ Por que?!
─ Porque eu estava do lado da notícia e não tive a capacidade de informar os fatos ao jornal antes dos outros.
─ Mas o Gregório acabou de ligar...! Não tinha como você saber!
─ Diga isso ao meu chefe... Ou melhor: Ex-chefe.
Ela levantou-se de sua poltrona, fechou a tampa do notebook e deu uma volta pela casa. Foi até seu quarto e pegou uma blusa. Abriu a porta de casa e voltou-se a mim:
─ Volto logo.
Bateu a porta e eu ouvi seus passos descendo as escadas rapidamente. Bateu a porta de baixo e se foi.

Voltou quando já estava de noite com uma caixa de pizza em mãos. Colocou-a em cima da mesa e respirou fundo.
─ Vão ser tempos difíceis. Aproveite a pizza... Não sei se vamos poder esbanjar dinheiro nas próximas semanas.
Um momento de silêncio.
─ Ele ferrou meu nome como jornalista. Arrumar outro emprego agora vai ser uma questão de tempo e sorte... E com a sorte que estamos tendo ultimamente...
Naquele momento desejei profundamente voltar para a casa dos meus pais, com comidinha caseira todos os dias... Sem problemas... Não podia abandonar Mariana no primeiro momento de dificuldade. Deixaria a água chegar ao pescoço antes de abandonar o navio.


2 comentários:

  1. Achei bom mas meio bobo.. Poderia ter ficado mais emocionante, o outro estava melhor

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  2. Você tem mais potencial. Faltou tempero.

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