As Duas Guerras de Vlado Herzog
conta a história do jornalista que passou por perseguição nazista durante a
Segunda Guerra Mundial e depois se juntaria aos jornalistas na luta contra o
regime ditatorial militar no Brasil, o país que prometia liberdade religiosa,
um lugar onde a família poderia chamar de “lar”.
O título faz menção às duas
guerras que o jornalista passou. Uma, na infância, o que motivou a família Herzog
a se mudar para o Brasil.
No início, as coisas passam
bastante rápido, principalmente nos pontos em que se fala sobre a primeira
parte da vida de Vlado.
Vlado Herzog nasceu em 27 de
junho de 1937, judeu, filho de Zigmund e Zora Herzog. Ele tinha quatro anos
quando sentiu o medo de um oficial pela primeira vez. Expulso de casa, na
chuva, ele chorava ao lado dos pais e dos avós. Cobrava uma explicação que os
adultos não poderiam dar. Uma explicação que muitos ainda não podem dar.
Durante o período da Segunda
Guerra Mundial, o casal fugiu para a Itália, onde viveram clandestinamente por
alguns anos. Depois de anunciado o fim do maior confronto bélico da história, a
família Herzog não via mais sentido em voltar para a Iugoslávia, sua terra
natal.
“Em 1946, o Brasil era uma
promessa de liberdade”. “Estavam felizes com a ideia de que, num dia não muito
distante, poderiam viver livremente num país que poderiam adotar como sua nova
pátria” (Pág. 35).
Em 1959, Vlado iniciou sua
carreira jornalística na redação de O Estado de São Paulo, ao lado de Luís
Weis, amigo de longa data. No mesmo ano, os dois ingressaram no curso de Filosofia
da Universidade de São Paulo.
“Weis buscava entender o rigor
crítico e o ceticismo com que Vlado se colocava perante o mundo. [...] Logo
Weis perceberia que o amigo não era aquele alienado que se negava a seguir o
cordão dos que gritavam slogans. O que acontecia é que ele não queria era se
limitar à superficialidade das coisas. Queria saber por que elas aconteciam”. (pág. 45)
Em 1962, ele conheceu Clarisse
Ribeiro Chaves no saguão da Faculdade de Filosofia da USP. Lá Vlado concluía
seu curso, enquanto ela iniciava o curso de Ciências Sociais. Pouco mais de um
ano após o primeiro encontro, estariam casados. Dois meses antes do golpe
militar ser deflagrado, em abril de 1964.
“De um lado os pais de Vlado
poderiam alegar que não era bom um casamento com uma não judia; de outro, a
família católica de Clarice temia que ela não fosse aceita entre os judeus”
Anos depois de casado, na
sexta-feira de Páscoa, dia de recolhimento para os católicos, Vlado saiu de
casa sem dizer nada, e quando voltou, trouxe consigo um peixe para a sogra, que
guardava o preceito de não comer carne naquele dia.
“Estavam num parque, Clarice e a
mão a empurrar os carrinhos das crianças quando ele (Vlado) perguntou à sogra:
- A senhora gostaria de assistir
à missa? Há uma igreja católica perto daqui”. (pág 57)
Em 1966 Herzog deixou o Brasil, indo a
trabalho para a BBC em Londres, com contrato assinado para prestar serviços por
3 anos. Clarice permaneceu em São Paulo, e após concluir o curso na USP no
final do ano, se juntou ao marido em Londres.
Zora e Giga, pais de Vladimir
Herzog, demonstravam o orgulho do filho: “Todas as noite em que Vlado estava
escalado para a transmissão da BBC ao nosso país, Giga e eu escutávamos a sua
voz. Era a mesma emoção cada vez. A voz do nosso filho vinda de ultramar,
falando para milhares de pessoas”. (pág 53)
Depois do nascimento do primeiro
filho, Ivo, o jornalista passou a assinar as cartas que enviava à sua mãe no
Brasil como “O pai do Ivo”. Em 1968 nasceu André, o segundo filho do casal.
Clarisse e Vlado criaram os dois
meninos junto com os filhos de Fernando e Fátima Pacheco Jordão, vizinhos e
colegas de trabalho de longa data (Fernando e Vlado trabalharam juntos na
redação do Estado e no jornalismo da TV Excelsior, além da BBC Londres);
(Clarice e Fátima eram amigas do tempo do ginásio e depois colegas na
universidade). Isso foi o que encorajou os Herzog a tentar a vida no velho
continente.
Em carta a um amigo, datada de 8
de maio de 1968, dizia: “Essa vida sedentária, passiva, na Europa, está ficando
sem sentido e a gente sente necessidade de ver-se integrado, bem ou mal, nalgum
processo ou atividade criativa. Vou disposto a jogar uma boa cartada nesse
negócio de TV educativa”.
Vladimir Herzog decide voltar
para o Brasil, e com carta-compromisso de contratação da TV Cultura, que lhe
garantia uma bolsa de estudos do governo britânico para um curso de produção de
televisão, ficou até dezembro em Roma. Clarice e os filhos chegaram antes, em
setembro.
Dois dias antes da viagem de
Vlado para São Paulo, recebeu a notícia da decretação do AI-5, o que não
deixava dúvidas: “Ditadura militar no Brasil” (pág 58).
“O país mergulhara de vez na
escuridão do arbítrio. A promessa de paz na qual a família acreditara ao chegar
ao Brasil começava a se quebrar. Iniciava-se, então, uma nova guerra”. (Pág
38).
Quando chega no Brasil, Vlado já
sente as premissas contra os órgãos de comunicação. “As portas da TV Cultura,
cuja direção havia assumido o compromisso de contratá-lo, uma vez concluído o
curso de produção de TV na Inglaterra, fecharam-se para ele. Previsível, o
motivo de lhe negarem o emprego tinha a ver com as informações que vinham dos
arquivos policiais da ditadura, carimbando-o como subversivo.”
Trabalhou como publicitário por
cerca de um ano, e Clarice descreve a experiência do marido no livro de
Audálio: “Foi a época mais difícil e infeliz da vida dele. O trabalho para ele
era a essência. Ele sofria terrivelmente por ter de fazer um trabalho que não
tinha nada a ver com a cabeça dele”. (pág 60).
Depois disso, foi trabalhar como
freelancer na revista Visão, para a qual produzia reportagens importantes.
Nessa função, mais tarde, Vlado fez um profundo levantamento da situação em que
estava a cultura no Brasil depois de dez anos de regime militar, em parceria
com Zuenir Ventura. Era um ato de coragem.
Antes da abertura política, em
1973, a TV Cultura convidou Herzog a integrar a equipe de jornalismo dirigida
por Fernando Pacheco Jordão. Até 1975, ainda esteva em contato com a revista
Visão.
Foi durante o governo de Médici,
o mais sanguinário e repressivo regime militar, que Jodão, Herzog e uma equipe
integrada por alguns dos melhores jornalistas da época ousaram ao criar um novo
jornalismo na TV Cultura, criando o programa ‘Hora da Notícia’. Jordão tornou
de Vlado o editor do programa.
No dia 3 de setembro, Vlado pisou
em terreno minado. Em meio à programação normal do Canal 2, um documentário
sobre o líder do Vietnã do Norte foi ao ar. No mesmo instante Vlado mandou
retirar o documentário da edição noturna e demitiu o responsável pela
reportagem sobre o Vietnã.
Aquilo tinha cheiro de sabotagem.
Ainda assim, mesmo com as medidas
rápidas tomadas por Vlado, os porões da ditadura começaram a mover os
tentáculos em direção ao jornalista.
Uma nota foi divulgada no dia 7
por diversos jornais: “TV Educativa continua sendo uma nau sem rumo.
Repercutindo –pessimamente- o documentário exibido pelo Canal 2, fazendo a
apologia do Vietcong. Acho que o pessoal do PC da TV Cultura pensa que isto
aqui virou o fio”
No final daquele mês o assunto se
tornou uma bola de neve. O fato não era mais uma infiltração comunista no
canal, e sim um “domínio total”. Não demorou muito para que um dos tentáculos
do grande monstro procurasse por Vlado.
Em 24 de outubro de 1975, Herzog
foi intimado a depor na manhã do dia seguinte, sábado, no Destacamento de
Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI,
localizado, ironicamente, no bairro do Paraíso.
O DOI-Codi era um órgão
subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo durante o
regime civil militar brasileiro. A organização tinha como objetivo busca,
apreensão, interrogatório de suspeitos, análise de informações e o planejamento
estratégico, ou seja, o órgão perseguia e torturava supostos integrantes da
esquerda.
Lá estavam 11 jornalistas: Sérgio
Gomes, Marinilda Marchi, Frederico Pessoas da Silva, Ricardo de Morais
Monteiro, José Póla Galé, Luiz Paulo da Costa, Anthony de Cristo, Paulo Sérgio
Markun, Diléia Markun, George Duque Estrada e Rodolfo Konder.
Paulo Nunes acompanhou Herzog até
o DOI-Codi. Fez isso a pedido de
Clarisse e Rui Nogueira, diretor do Canal 2 onde Vlado trabalhava.
Vladimir Herzog foi torturado e
obrigado a assinar uma declaração de culpa que dizia "Eu, Vladimir Herzog,
admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido aliciado por Rodolfo
Konder”.”
Em seguida, em um ato de bravura e indignação, Vladimir Herzorg rasgou o papel em pedaços. Talvez ele soubesse, talvez não, mas aquilo resultaria em sua morte. As torturas se tornaram cada vez mais fortes e os gritos, abafados pelo altíssimo som do rádio, cada vez mais baixos. Vladimir Herzog nao suportou a tortura e faleceu
Com o auxílio de uma fotografia
mal montada e de um laudo assinado pelo ex-médico legista Harry Shibata, o
episódio foi classificado como "suicídio"
Em 25 de outubro de 1975, o
diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e amigo pessoal de Herzog,
Fernado Pacheco Jordão, recebeu uma ligação que dizia “‘Fernando, uma notícia
triste para lhe dar, o Vlado morreu. O Lang (jornalista da Rede Globo que
cobria a área militar) ligou agora há pouco e disse que o II Exército está
preparando uma nota oficial dizendo que o Vlado se suicidou.”
Da nota oficial, distribuída pelo
comando do II Exército na manhã do dia 26 de outubro, dizia: “Cerca dás 16
horas, ao ser procurado na sala onde fora deixado desacompanhado, foi
encontrado morto, enforcado tendo para tanto utilizado uma tira de pano. (...)
As atitudes do senhor Vladimir Herzog, desde a sua chegada ao órgão do II
Exército, não faziam supor o gesto extremo por ele tomado”
Depois da divulgação da clássica
imagem de Herzog “enforcado” pelo cinto do macacão (cinto que, por sinal, não
existia no uniforme dos prisioneiros), ninguém acreditava na versão oficial.
“O Sindicato dos Jornalistas, que
ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das
autoridades um fim a esta situação, em que jornalistas profissionais, no pleno,
claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e
residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança
que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de
que irão apenas prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem
assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por
várias semanas, em flagrante desrespeito à lei. Trata-se de uma situação, pelas
peculiaridades, capaz de conduzir a desfechos trágicos, como a morte do
jornalista Vladimir Herzog, que se apresentara espontaneamente para um
depoimento”.
A nota assinada por Audálio
Dantas, autor do livro em questão e presidente do sindicato dos jornalistas.
O sindicato dos jornalistas se
tornou um refúgio para profissionais de todas as áreas, pessoas cansadas de
abaixar a cabeça para ditadores e principalmente cansados de ter suas bocas
amordaçadas por um monstro cheio de tentáculos, um monstro chamado Censura.
Depois de sete dias da morte de
Vlado, um culto ecumênico foi marcado. Os jornalistas mostraram quem
verdadeiramente eram. Mostraram que ainda tinham voz, mesmo que durante aquela
tarde do dia 31 de outubro, todos estivessem no maior e mais absoluto silêncio.
Oito mil pessoas se reuniram na
Catedral da Sé. O culto contou com a presença de Dom Paulo Evaristo Arns,
Cardeal Arcebispo de São Paulo, e Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e
Recife. Participaram também o pastor protestante James Wright e o rabino Henry
Sobel.
Mais de 500 policiais foram
escalados para montar barreiras de contenção pela cidade. Esta era a Operação
Gutemberg e seu objetivo era impedir que as pessoas chegassem ao centro da
cidade. Muitos ficaram presos no trânsito e desistiram de comparecer à
Catedral.
Ainda assim, às 16 horas a
catedral estava lotada. Agentes da repressão fotografavam e filmavam os
presentes. Ainda assim, contrariando a expectativa que o governo tinha, tudo
aconteceu da maneira mais calma e contida possível.
Contudo, o regime ditatorial
tremeu perante aquele grito silencioso. Audálio Dantas diz que “a história
recente do Brasil pode ser escrita assim: antes e depois de Vlado”
O jornal “O Estado de S.Paulo”
aceitou publicar matéria paga de uma página, custeada por 1.004 jornalistas de
vários estados, apontando os casos de tortura e morte patrocinados pelo regime
– outra iniciativa do Sindicato dos Jornalistas. Outros jornais ganharam
coragem e fizeram pequenas e médios comentários que fugiam à AI-5.
A imprensa estava acordando.
Em janeiro de 1976, o
monstro da ditadura fez mais uma vítima
quando o metalúrgico Manuel Fiel Filho morreu por tortura. Isso ocasionou um
fato inédito: um comandante do 3º Exército foi demitido.
O barco estava cheio de
rachaduras e homens e ratos tentavam se salvar. Alguns se jogavam no mar,
enrolavam-se em suas mentiras e afundaram com ela. A abertura lenta, gradual e
segura era o plano do capitão.
Texto de Gabriela Leão Mandaji
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