Então
meu telefone tocou.
─ Oi, é o Bruno... A Mariana está com você?
─ Não...
─ To tentando ligar pra ela faz tempo, mas não sei onde ela
está... Bom, se conseguir falar com ela, me liga ok?
E desligou. Procurei o número dela na agenda do celular e
liguei, mas ela não atendeu. Liguei para o restaurante dela, mas ninguém sabia
dela. Durante a ligação, meu celular vibrou como sinal de mensagem.
Ok, poderia ser a operadora do celular, meus pais, meus
amigos, respostas para a entrevista de emprego (num domingo, é)... Mas não, a
vida não é tão fácil assim.
A mensagem, de um número anônimo, dizia: “Sentindo falta da
namoradinha? Que bom. Eu sinto falta de 100 mil daquele total. Tentaram me
enganar?”
Meu coração quase parou. Soquei a mesa e senti a dor
irradiar pelo meu braço. Li a mensagem várias vezes seguidas. Não poderia ser
verdade! o dinheiro estava certo...
Não podia ser só coincidência... Bruno me ligou e logo em
seguida recebi aquela mensagem?! Tinha que ser ele! Santo Deus, se ele fizesse
algo com Mariana...
O que ele queria?! Dinheiro?! Não... Não... Atenção?
Vingança pela bronca que ele levou dos policiais há 15 anos?! Puta que o pariu,
Bruno!
Afundei as mãos nos cabelos e respirei fundo. Precisava
ficar calmo. Liguei para Lúcio e contei sobre o ocorrido e minhas
desconfianças. Ele ouviu e concordou.
Chegamos à conclusão de que eu deveria voltar para a cidade
onde tudo começou. Combinamos um ponto de encontro para chegarmos juntos e
resolver logo aquilo. Era hora de acabar com aquela palhaçada.
Sai com o carro cantando pneus. Lúcio me esperou em certo
ponto da estrada. Não parei. Dei apenas uma buzinada e ele logo colocou a moto
na estrada, me acompanhando.
Devo ter recebido muitas multas naquele final de tarde e
começo de noite. Chegamos à cidade quando as luzes da rua já estavam ligadas.
Lúcio me guiou até a casa de Bruno. Descemos sem nos cumprimentar.
Lúcio apertou o botão do interfone e as portas se abriram
para nós. Entramos. Era uma puta casa enorme, linda, bem iluminada, com árvores
e piscina. Mas eu não reparei nisso na entrada. Quando vi Bruno aparecendo na
porta, eu não vi mais nada.
Peguei o político pelo pescoço e o empurrei até a parede.
Minha mão ia afundando na garganta dele aos poucos.
─ Onde ela está? ─gritei.
Ele tentou falar, não conseguia. Sua preocupação era se
debater e tentar se livrar de mim. Nunca fui um homem muito mais forte que os
outros, nem muito mais fraco. Bruno era um pouco mais baixo que eu, então
ganhei vantagem.
─ Onde ela está? ─falei novamente.
Lúcio chegou até mim correndo. Acho que ele deve ter
apreciado o show antes de se envolver. Me afastou de Bruno aos puxões.
─ Se fizer isso ele não vai falar, idiota. ─ele murmurou
para mim─ Agora, Bruno, meu velho amigo... Onde ela está?
Ele levou a mão à garganta e começou a tossir. Ele olhava
para mim e depois para Lúcio como quem diz: Segura esse louco! Ele tentou me
matar!
─ Eu vou... Chamar a polícia! Seus... assassinos!
Falava engasgando, tossindo. As mãos dele tremiam e as
pernas pareciam estar presas ao chão. Por um momento ele me lembrou daquela
noite, há quinze anos... Eu ficara assustado.
Eu dei um passo em direção a Bruno e ele recuou como um
animalzinho indo para o abate. Lúcio deu uma risadinha sádica e se colocou
entre nós dois.
─ Vamos entrar, senhores. ─Lúcio disse─ Precisamos
conversar.
Entramos. A casa era grande. Uma mulher veio correndo em
nossa direção. Olhou para mim assustada, em seguida para o chefe:
─ Está tudo bem, senhor?
─ Está sim ─disse Lúcio sorridente─ Sabe como são essas
brincadeiras de velhos amigos, né? Parecem dois cães brincando.
A mulher voltou a olhar para mim. Dei um sorrisinho forçado.
Ela olhou para o chefe e nos olhou desconfiada. Tinha ido até lá para mostrar
que estava presente e que não poderíamos matar o chefe dela assim, do nada.
Lembrei de Lúcio falando sobre o que fazer com nosso
chantagista naquela primeira noite. E se ele voltar a nos chantagear? E ali
estávamos nós, sendo chantageados novamente.
E ele tinha ficado com aquele dinheiro todo. Pra quê? será
que estava falido? Devendo dinheiro pra algum esquema de corrupção? Eu o olhava
tentando ler minhas respostas naquela cara feia de político.
A empregada continuava lá, parada na sala, nos encarando.
─ Sentem-se, vamos conversar. ─disse Lúcio com tom
agradável─ Querida, poderia nos trazer um café? Um suco talvez...
─ Sim senhor. ─disse se afastando a contragosto.
Ficamos os três sozinhos.
─ Mariana sumiu, achamos que foi você.
─ Eu? Eu o que?
─ Você a sequestrou. ─falei.
Lúcio falou o que sabíamos. Bruno negou o tempo todo.
Estávamos quase no final quando meu celular recebeu uma mensagem: “Desconfiando
de quem confiam há tanto tempo? Que feio.”
Fechei os olhos e respirei fundo. Cocei a barba, olhei para
os lados... Tive vontade de jogar o celular na parede, mas eu simplesmente
entreguei o aparelho para Lúcio.
─ Puta que me pariu... ─murmurou.
Ele mostrou o celular para Bruno, que deu um suspiro.
─ Estão vendo? Não fui eu! Me deve um pedido de desculpas!
─ Você bem que mereceu. ─disse Lúcio─ Mas não temos tempo
pra isso. Se não foi você, não sabemos pra onde correr agora.
A empregada de Bruno se aproximou com a bandeja com sucos de
laranja ou maracujá ─ eram amarelos. Nos serviu como uma empregada de novela.
Ela tinha cabelos pretos e lisos, pele queimada pelo sol. Tinha um corpo
relativamente bonito, um pouco mais gorda que Mariana, e um pouco mais alta. Logo
ela se retirou.
Bebi o copo de suco num gole só. Era de laranja e era
natural. Há quantos anos eu não bebia suco natural? Com aqueles gominhos que
ficam presos no dente...
Outra mensagem. “100 mil até meia noite, no mesmo lugar de
antes. Ela estará lá.”
Mostrei a nova mensagem para os outros. Bruno se colocou de
pé e andou de um lado para o outro murmurando qualquer coisa.
Lúcio me olhou com olhos que refletiam os meus. Não iríamos
dar 100 mil a ninguém. Daríamos mais um corpo ao rio. Me levantei.
─ Vamos dar um jeito nisso.
Lúcio se colocou de pé logo em seguida.
─ Como vão conseguir esse dinheiro? ─perguntou Bruno.
─ Vamos dar um jeito. ─disse Lúcio─ Vamos.
Saímos da casa em silêncio. Chegamos à calçada.
─ E agora? ─perguntei.
─ Agora, meu caro... Vamos conversar com alguns amigos meus.
Venha.
Subi na moto com ele e saímos dali. A cidade era pequena,
mas tinha uma “periferia”. Fomos até lá e deixamos a moto um pouco longe. Fomos
andando em silêncio.
Paramos em frente a uma casinha sem graça e Lúcio empurrou a
porta. Entramos. Um corredor escuro e cheio de portas. Assustador.
─ Léo, sou eu, o Lúcio! Estou entrando com um amigo, o
Eduardo. Preciso que você pague aquele favor.
Um rapaz abriu uma porta do corredor. Era magricela, com uma
cara de esquizofrênico. Ele fez um sinal para que entrássemos.
─ Quero uma arma, Léo. Uma leve, rápida, pra poucos tiros a pouco
alcance.
O rapaz concordou com a cabeça. Na pouca luz do local
(proporcionada apenas por uma televisão e três telas de computadores), eu via
que o garoto era ainda mais assustador. O rosto tinha uma tatuagem tribal e os
braços tinham cicatrizes enormes.
Ele concordou com a cabeça e saiu da sala.
─ Não pergunte de onde conheço esse cara.
Eu apenas o encarei.
─ Ok, ok... Uma vez a polícia estava atrás dele, há uns três
anos... Ele se escondeu na minha casa. Peguei o garoto pela camiseta e provei
que se eu quisesse, os policiais iriam pegá-lo. Mas não... Ele me seria útil.
Larguei o moleque, dei cobertura... Depois deixei ele ir.
─ Era acusado de que?
─ Assassinato.
Ótimo, agora todo mundo era assassino. O rapaz voltou com
uma arma em mãos. Lúcio a pegou na mão, checou a munição e guardou-a na
cintura.
─ Obrigado, garoto. Te devolvo amanhã ou depois.
Ele apenas concordou com a cabeça e abriu a porta para que
saíssemos. Chegamos à calçada.
Estava de noite. Nós voltamos à moto e passamos no banco 24
horas. Talvez alguém nos observasse. Consultei meu saldo e tive vontade de rir.
Eu nunca juntaria aquele dinheiro todo... Nunca.
Lúcio apareceu com uma maleta igual à da noite anterior.
Já passava das nove horas. Passamos no restaurante de
Mariana e comemos de graça lá, afinal, os funcionários nos conheciam. Não
bebemos uma gota de álcool. Nossos sentidos precisavam estar tão bons quanto há
15 anos.
Bruno me ligou.
─ E aí?
─ Ainda nada, está muito cedo. Mas conseguimos o dinheiro.
Vamos deixar tudo lá e rezar para soltarem Mariana.
Não sei porquê, mas eu senti necessidade de mentir para
Bruno. Eu ainda não confiava nele. Ele desejou boa sorte e desligou.
Terminamos de comer e saímos do restaurante às 10 da noite.
Subi na moto de Lúcio e pegamos aquela estrada maldita. 10:35 estávamos no
ponto certo da estrada. Eu desci com a maleta, coloquei-a no mesmo lugar de
antes e voltei para a moto.
Nós a deixamos cerca de um quilometro mais longe, no meio do
mato. Voltamos andando em silêncio, na mais completa escuridão. Chegamos ao
ponto da estrada em que podíamos ver a maleta e lá ficamos, abaixados, no meio
do mato, observando.
Eu não podia consultar as horas no celular, então só pude
ver as horas depois de tudo – o que era muito tarde. Podemos dizer que
esperamos uma hora ou mais.
─ Preciso te dizer algo. ─cochichou Lúcio─ Eu tirei 100 mil
do total para pagar minhas dívidas...
Não respondi. Eu já desconfiava daquilo. Me irritei, mas
respirei fundo e coloquei a mão no ombro dele.
─ Tudo bem.
Então um carro veio vindo na estrada... Reduziu a velocidade
e parou. Uma pessoa desceu de lá, pulou a proteção da estrada e foi pegar a
maleta. Lúcio me cutucou o braço e nós fomos.
Senti a mesma coisa de quinze anos antes por alguns
instantes, mas depois pensei que aquela pessoa estava com Mariana. Estávamos
quase alcançando a pessoa quando ouvimos um tiro vindo do carro.
Me abaixei e Lúcio gritou:
─ Tem mais alguém! ─e deu um tiro em direção ao carro.
Me lembrei que tínhamos pouca munição. Olhei para a primeira
pessoa, que fora buscar a maleta. Lúcio tirou algo do bolso e me entregou.
Senti o metal gelado nas mãos. Era um canivete.
Eu soube que não era qualquer canivete. Era aquele canivete. O mesmo que rasgou uma
garganta há anos atrás. Eu abri a lâmina e corri em direção à pessoa. Pulei
sobre a proteção entre as árvores e a estrada e me joguei em cima daquele ser
humano.
Senti que a lâmina se enterrava na clavícula da criatura.
Caímos os dois no chão. Eu e o corpo da pessoa que ainda estava viva. Tentou se
arrastar para longe de mim enquanto rolávamos no chão.
Eu puxei o pé daquele alguém e virei a criatura para mim. Me
coloquei em cima do corpo da pessoa e sentei em sua barriga. Era magro e
respirava ofegante. Estava com uma toca ninja preta. Por um momento tive dúvida
se queria ver o rosto antes de matar ou não. Mais um rosto para me aterrorizar.
Minha decisão foi tomada. Eu não queria mais um rosto me
perseguindo. Preferia que fosse qualquer um que um específico. Estava escuro. A
única luz vinha do farol do carro, que estava há cerca de dez metros, voltado
para a estrada.
Respirei fundo e, no momento seguinte, enterrei a lâmina no
pescoço de meu inimigo. Não houve muitos ruídos. Um sufocamento simples e
lento, nada mais. Eu não estava nervoso. Minhas mãos não tremiam e nem soavam.
Outro tiro. Lúcio! Me levantei com o canivete em mãos e
corri até o carro. A porta de trás do carro ainda estava aberta. Entrei por ela
e me coloquei atrás do motorista enquanto ele fazia mira em Lúcio.
Coloquei as mãos ensanguentadas em volta do pescoço do
motorista e o canivete fazendo pressão em sua garganta.
─ Morra. ─murmurei calmamente.
Puxei a faca e senti minhas mãos esquentarem com o líquido
expeço que escorria da garganta. A pessoa se engasgou com o próprio sangue e
caiu para frente, apertando a buzina. Eu me levantei, segurei os cabelos da
nuca da pessoa e notei que era uma mulher.
Fiz seu corpo cair para o lado, e não para frente. Saí do
carro e Lúcio veio correndo até mim, visivelmente machucado.
─ Estão mortos. ─falei.
Saí do carro, dei a volta e olhei o corpo. Fiquei surpreso:
era a empregada de Bruno. Os cabelos pretos estavam empapados com sangue. Ela
estava definitivamente morta. Não poderia deixar o carro e as provas ali...
Olhei para fora e vi que o rio me chamava.
Na verdade, não chamava a mim, e sim ao corpo. O certo a
fazer seria colocar os dois corpos no carro e jogar tudo no rio. Sequei as mãos
em minha camiseta e fui até o outro corpo.
Lúcio estava ajoelhado ao lado do primeiro corpo, em
silêncio. Notei que ele tremia muito. Talvez fosse a dor causada pelo ferimento
a bala... Me aproximei e reparei que ele tinha tirado a toca ninja do morto.
Não quis, mas mesmo assim olhei. Antes tivesse arrancado
meus olhos segundos em vez de fazer essa bobagem.
O corpo era o de Mariana.
Havia uma fita cinza amordaçando sua boca. Seu rosto estava
pálido e seus olhos cheios de lágrimas que escorreram e transformaram a
maquiagem em uma obra mórbida.
Eu havia feito aquilo.
Caí de joelhos e não sei bem o que fiz depois disso. Sei que
chorei como uma criança abraçando o corpo morto dela. O rasgo na garganta não
vazava mais sangue, mas eu fiquei encharcado. Minhas roupas estavam tão
vermelhas quanto as dela.
Não muito tempo depois Lúcio me dirigiu a palavra.
─ Demos tiros, logo as pessoas chamarão a polícia... ─disse
baixo, quase inaudível.
Eu levantei os olhos para ele. A escuridão não parecia mais
tão escura... Como eu pude mata-la? Como eu não reconheci seus olhos? Como?
Passei a mão na testa para tirar os cabelos que estavam
entrando nos meus olhos. Respirei fundo. Agora eu era o assassino de três
pessoas. Olhei para Lúcio e pensei seriamente em mata-lo também e em seguida
dar cabo da minha própria vida.
Ele deve ter sentido medo, porque estendeu a mão.
─ Me dê o canivete. Não precisa mais dele agora.
Notei que a lâmina ainda estava nas minhas mãos. Eu abraçava
Mariana com a arma do crime ali, encolhida, pressionando sua pele branca e
morta.
─ Agora não. ─respondi guardando-a no bolso.
Ele se levantou e estendeu a mão para que eu me levantasse.
Foi o que fiz. Estávamos de pé, com o corpo de minha amada entre nós.
─ Vamos jogá-la no rio? ─perguntou Lúcio com o máximo de
polidez que fosse possível.
─ Não temos tempo de enterrá-la.
Lúcio concordou com a cabeça. Como naquele ponto da estrada
havia uma proteção entre o rio e o asfalto, precisávamos levar o carro um pouco
mais para frente.
Pegamos o corpo de Mariana e o colocamos no banco de trás do
carro. Eu me propus a dirigir. Empurrei o corpo da empregada de Bruno para o
lado e me sentei no banco.
O sangue de minha terceira vítima esfriava no banco. Dei a
partida e Lúcio se pendurou do lado de fora, em cima do para-choque. Estava
ferido, não conseguiria andar até a moto.
Passei os olhos pelo carro e vi uma maleta. Abri e vi o
dinheiro. O nosso dinheiro. Aquelas porcarias de papel.
Um quilômetro depois eu já tinha elaborado a teoria sobre
porque a mulher ao meu lado era nossa chantagista. Bruno, aquele idiota,
deveria ter falado com Mariana no telefone sobre o ocorrido de 15 anos atrás,
ou escrito em um diário... De alguma maneira, a mulher ficou sabendo.
Ela pesquisou o caso na delegacia da cidade, descobriu quem
éramos... Só que sua pesquisa despertou a curiosidade do delegado. Ele, ao
contrário dela, era burro. Ela decidiu nos chantagear. Vadia.
Chegamos ao ponto em que a moto estava. Parei e Lúcio
desceu. Ele estava se aproximando da janela do motorista quando tomei uma
decisão importante. Peguei a maleta de dinheiro e joguei-a para fora. Pelo
retrovisor, olhei uma última vez para meu amigo.
Acelerei o carro em direção ao rio. Ouvi os gritos dele logo
antes do carro sair da estrada, passar alguns metros entre as árvores e
finalmente... O rio.
O baque de quando o carro caiu na água pode ser comparado a
uma batida normal de carro. Eu estava sem cinto, então bati o rosto no volante.
Não desmaiei como uma cena de cinema pedia.
A água começou a entrar no carro com uma velocidade
incrível. Olhei para trás, vi o rosto branco de Mariana. Era com essa lembrança
que eu terminaria aquela vida.
A água batia em meu pescoço. Ainda ouvia os gritos de Lúcio
lá fora. Puxei o ar para os pulmões e deixei a água inundar o carro.
Era um renascimento.
A escuridão meu pai, a água gelada, minha mãe. Por breves momentos
eu fiquei com os olhos fechados, ouvindo o som ensurdecedor que a situação
proporcionava. Eu não era mais Eduardo, eu era um assassino.
Abri a porta do carro e saí nadando do veículo. A correnteza
puxava a lataria com força. O som do ferro batendo nas pedras me acalmou:
ninguém acharia aquilo tão cedo.
Já fora do carro, subi à superfície. O ar inundou meus
pulmões e eu me senti vivo. Óh Deus! Foi a primeira vez que me senti vivo de
verdade. Olhei para as margens. Eu já estava longe de meu amigo. Nadei a favor
da correnteza sem medo de me chocar com um galho, uma pedra ou um carro.
Algum tempo depois eu estava numa parte mais lenta do rio.
Me dirigi à margem e deitei no chão de terra. Eu tremia de frio, mas fiquei
parado, recuperando o fôlego e olhando para o céu.
A lua brilhava timidamente. Era minha cúmplice. Silenciosa,
muda. Coloquei as mãos nos bolsos e senti duas coisas: o celular e o canivete.
O celular não era necessário. Joguei-o na beira do rio e lá ele ficou.
Já o canivete...
Me levantei quando minha respiração voltou ao normal.
Caminhei pela estrada algum tempo e então vi uma casinha. Fui me aproximando
silenciosamente e achei um varal cheio de roupas secando.
Entrei no quintal da casa, tirei minhas roupas molhadas e me
vesti com as opções do varal. Faltava-me um calçado e dinheiro.
Circundei a casa, achei uma janela aberta na sala (coisas de
cidades do interior, meus caros) e entrei. Meus pés descalços sentiram o tapete
da sala como se fosse uma coisa nova. Caminhei pela casa na escuridão, mas logo
achei um par de chinelos. Fui até a cozinha, bebi água da torneira e, por graça
do Destino, achei uma carteira em cima da mesa, iluminada pela pouca luz da
lua. Aquela pilantra queria me ver roubando.
A carteira tinha pouco, mas era melhor que nada. Coloquei o
dinheiro em meu bolso seco e voltei para a estrada.
Dois dias depois ocorreram os enterros. Cidade pequena é uma
merda. Meio mundo estava chorando por mim e Mariana. Meus pais estavam aos
cacos, vestidos de preto e em silêncio.
Eu sei porque eu vi. Fui até meu próprio enterro e ouvi Lúcio
contar sobre como eu havia sido um herói ao dar minha própria vida na tentativa
de salvar Mariana e a outra moça. Segundo a ótima história de meu amigo, nós
quatro havíamos sido atacados por um grupo de assaltantes e ele, Lúcio, havia
sido covarde o suficiente para se jogar do carro em movimento e ainda levar um
tiro.
As pessoas acreditaram.
A polícia acreditou.
Como há 15 anos.
Não havia caixões porque os corpos não foram encontrados.
Não esperei o final de cerimônia. Dei às costas à minha lápide e sumi na
primeira esquina.
super legal
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