sábado, 20 de junho de 2015

[conto] O encontro às cegas


– Você tem que ler esse livro!  
– Ele é muito grande. –reclamou a amiga– E eu não gosto dessas histórias de fantasia. Gosto de mitologia e clássicos... Essas novidades não me atraem.
Estava frio e as duas estavam indo em direção a um barzinho onde encontrariam um grupo de amigos da faculdade. Depois de concluir o antepenúltimo semestre da faculdade, todos mereciam uma noite de relaxamento. Além disso, um dos amigos tinha conseguido passar em uma entrevista de emprego para uma grande empresa. Aquilo merecia uma dose de tequila para todos, sem dúvida.
Aquilo, no entanto, duraria apenas meia hora para Rosa. Depois da comemoração com os amigos, tinha um encontro. Sim, um encontro. Era uma situação nova em sua vida. Ela nunca tinha tido um encontro, propriamente dito. Estava um tanto quanto... Nervosa.
– Mesmo assim, você deveria ler. Talvez goste de como a história anda, é realmente interessante. Tem um personagem que tem uma função de guardador de memórias sociais. É um cenário meio pós-apocalíptico, tem escravos, ladrões, nobres... Mas eles se organizaram como se fosse uma monarquia, sabe?
– Tem um rei? Num cenário pós-apocalíptico? Isso não faz sentido. A sociedade estaria beirando o anarquismo, Rosa.
Estavam saindo do metrô e o vento bagunçava o cabelo da dupla. A rua estava mal iluminada, como sempre. O centro da cidade deveria, teoricamente, ser mais iluminado. Uma das ruas mais famosas da cidade, no entanto, era escura e cheia de drogados. Realmente, pensou Rosa, estaria em frangalhos.
– O cara não é um rei, ele é um pedaço de Deus. Ele é tipo... Imortal! E ai ele é o cumpridor de uma profecia antiga: ele poderia salvar ou acabar com o mundo. Ao meu ver, ele falhou na missão. Tem chuva de cinzas e as plantas não conseguem viver!
– E como diabos as pessoas vivem sem planas, Rosa? Ta vendo? Esses livros não fazem o menor sentido!
– Mas a parte principal da história é que tem uns caras com uns poderes...!
– Poderes? Tipo Marvel?
O frio tinha afugentado as pessoas dos barzinhos da rua. Às 11 da noite as calçadas já deveriam estar cheias de filas, bêbados e vendedores de bebidas nas esquinas. Os tais vendedores utilizavam caixas de isopor cheias de gelo e bebidas baratas. O mais requintado que se podia encontrar com esses vendedores eram doses de tequila de baixa qualidade. Ainda assim, aquilo era perfeito para o “esquenta” pré-barzinhos. Ainda assim, tudo parecia mais vazio que o normal.
– Não, carai! –ela riu enquanto tirava uma das alças da mochila das costas. Puxou um pedaço do zíper e tirou o livro de lá– Olha, os caras usam essa capa muito louca e então precisam repor esses poderes...
Foi então que Rosa olhou para trás um segundo antes de um homem agarrar sua mochila. Ela bateu no rosto do homem com o livro que tinha na mão e aquilo foi o suficiente para distrai-lo.
– CORRE! –ela disse enquanto suas pernas começavam a correr de volta para o metrô. Para sua surpresa, sua amiga tinha ficado para trás. Ela voltou a pouca distância que tinha percorrido. Dois metros, talvez menos. Tudo passou muito rápido.
Ainda com o livro na mão, Rosa bateu novamente no ladrão enquanto grania enraivecida. Onde estavam as pessoas para ajudar? ALGUÉM com certeza estava vendo aquilo! Onde estavam os outros?!
O ladrão se afastou atordoado. Provavelmente não estava em suas plenas faculdades mentais. Ele se afastou apenas o suficiente para parar de apanhar com o livro de Rosa. Ele ficou encarando sua agressora por alguns segundos.
– Ta loucona, ow?

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– O que está acontecendo lá fora?
A grande maioria dos cegos realmente tinham uma audição invejável. No momento em que ouviu uma moça gritando para alguém correr, Lucas se colocou alerta dentro do taxi. O que um cego poderia fazer para ajudar uma moça no meio de uma rua escura? Não que ele soubesse que a rua estava escura, mas lembrava-se de como era o lugar antes de perder a visão.
– Tem uma moça batendo num cara com... Um livro.
Lucas não pôde deixar de sorrir. Um ataque de cultura, literalmente.
– Acho que ele estava tentando assaltar as moças, sei lá.
Do lado de fora o ladrão começou a brigar com a moça. Aparentemente ele estava drogado, bêbado ou louco. A voz era lenta e arisca. Alguém tem que ajudar essa moça. Lucas abriu o vidro do carro e sentiu os sons da rua invadindo seus ouvidos.
Ouviu a voz do ladrão, a voz da moça... Ouviu gente na calçada, ouviu o som de algumas baladas, alguns bares e sua própria respiração acelerada. Então ouviu a voz do ladrão se afastando, até se tornar um murmuro longínquo. Aparentemente eram duas moças, pois um choro baixinho chegou aos ouvidos de Lucas. A voz, no entanto, era diferente da primeira. A moça do livro.
Imaginou como seria a tal moça. Imaginou que talvez ela nem mesmo conhecesse a chorona, mas simplesmente defendeu um desconhecido incapacitado. Talvez ela tenha feito o que todos os outros nem pensaram em fazer. Talvez ela fosse uma justiceira da cidade, que espreitava os becos em busca de justiça... Agh, aquilo não fazia sentido.
Antes de perder a visão, Lucas lia histórias em quadrinhos e livros de ficção. Depois do acidente, limitou-se aos filmes da Marvel. Gostava daquilo. Gostava de pensar em como as coisas poderiam ser emocionantes se a dose de coragem fosse certa.
A coragem o deixou cego, é claro. A cegueira o deixou assustado.
O taxista o deixou na frente do barzinho onde seria seu encontro. Aquele era o primeiro encontro depois do acidente. Não conhecia a menina pessoalmente. Conversava com ela há meses por mensagens. Orgulhoso, Lucas não queria mensagens de voz. Era capaz de utilizar um aplicativo para a leitura de tudo o que lhe era enviado. Ah, a tecnologia...
Ele pagou o taxista usando duas notas de dinheiro dobradas de comprido, o que significava 100 reais. O taxista devolveu duas notas que, teoricamente, somavam 20 reais. Ele saiu do carro estendendo sua bengala para a calçada. Já tinha visitado aquele lugar duas vezes – ambas no pós-acidente– e, julgando pela saída de som do lugar, conseguiu encontrar a entrada.
– Lucas, querido! –disse uma atendente assim que ele colocou os pés dentro do estabelecimento. Todo mundo conhece o ceguinho, é claro. Sou especial e eles têm medo que eu tropece e caia na mesa dos outros clientes.
A moça estendeu o braço e levou Lucas até a mesa reservada. Não muito próxima às caixas de som, não muito próxima aos banheiros. Era, na opinião de Lucas, um dos melhores lugares. Não sabia dizer se era bonito, mas os amigos que o acompanharam nas outras vezes elogiaram a decoração.
Lucas estava praticamente uma hora adiantado. Sabia disso. Estava ansioso com aquele momento e preferiu ir antes para confirmar a mesa reservada e precaver-se do trânsito da cidade. O frio, no entanto, afastou todos da rua e liberou as avenidas.
Ficou lá treinando sua audição. As pessoas que iam e vinham, os garçons batendo copos, os garfos e facas se cruzando, as risadas e tudo o que era possível. O mundo escuro era cheio de sutilezas. Um mundo único. Ela sabe que não enxergo. As pessoas vão zoar a moça, caso um dia ela me namore... “Só um cego pra te namorar!”. Ela sabe disso. Talvez venha apenas por educação. Ele suspirou, sentindo os cheiros de comidas e bebidas. Pare de ficar criando histórias, Lucas. Isso não vai te levar a lugar nenhum.
Então ouviu uma voz conhecida. Aparentemente tinha acabado de chegar e se aproximava de sua mesa. Não podia ser a mesma pessoa de antes. Talvez estivesse confundindo as vozes... Ou talvez a moça que bateu em um ladrão com um livro estivesse mesmo no barzinho. Sim, era ela.
– Lucas? –ela disse.
– Rosa?
  



*conto baseado em um sonho que tive essa tarde. 
**sim, eu batia num bandido com o livro Mistborn - que estou lendo no momento.
***sim, eu tinha um encontro com o Demolidor. #BeijosProRecalque

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