sábado, 3 de maio de 2014

As Duas Guerras de Vladimir Herzog





As Duas Guerras de Vlado Herzog conta a história do jornalista que passou por perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial e depois se juntaria aos jornalistas na luta contra o regime ditatorial militar no Brasil, o país que prometia liberdade religiosa, um lugar onde a família poderia chamar de “lar”.
O título faz menção às duas guerras que o jornalista passou. Uma, na infância, o que motivou a família Herzog a se mudar para o Brasil.
No início, as coisas passam bastante rápido, principalmente nos pontos em que se fala sobre a primeira parte da vida de Vlado.
Vlado Herzog nasceu em 27 de junho de 1937, judeu, filho de Zigmund e Zora Herzog. Ele tinha quatro anos quando sentiu o medo de um oficial pela primeira vez. Expulso de casa, na chuva, ele chorava ao lado dos pais e dos avós. Cobrava uma explicação que os adultos não poderiam dar. Uma explicação que muitos ainda não podem dar.
Durante o período da Segunda Guerra Mundial, o casal fugiu para a Itália, onde viveram clandestinamente por alguns anos. Depois de anunciado o fim do maior confronto bélico da história, a família Herzog não via mais sentido em voltar para a Iugoslávia, sua terra natal.
“Em 1946, o Brasil era uma promessa de liberdade”. “Estavam felizes com a ideia de que, num dia não muito distante, poderiam viver livremente num país que poderiam adotar como sua nova pátria” (Pág. 35).
Em 1959, Vlado iniciou sua carreira jornalística na redação de O Estado de São Paulo, ao lado de Luís Weis, amigo de longa data. No mesmo ano, os dois ingressaram no curso de Filosofia da Universidade de São Paulo.
“Weis buscava entender o rigor crítico e o ceticismo com que Vlado se colocava perante o mundo. [...] Logo Weis perceberia que o amigo não era aquele alienado que se negava a seguir o cordão dos que gritavam slogans. O que acontecia é que ele não queria era se limitar à superficialidade das coisas. Queria saber por que elas aconteciam”.  (pág. 45)
Em 1962, ele conheceu Clarisse Ribeiro Chaves no saguão da Faculdade de Filosofia da USP. Lá Vlado concluía seu curso, enquanto ela iniciava o curso de Ciências Sociais. Pouco mais de um ano após o primeiro encontro, estariam casados. Dois meses antes do golpe militar ser deflagrado, em abril de 1964.
“De um lado os pais de Vlado poderiam alegar que não era bom um casamento com uma não judia; de outro, a família católica de Clarice temia que ela não fosse aceita entre os judeus”

Anos depois de casado, na sexta-feira de Páscoa, dia de recolhimento para os católicos, Vlado saiu de casa sem dizer nada, e quando voltou, trouxe consigo um peixe para a sogra, que guardava o preceito de não comer carne naquele dia.
“Estavam num parque, Clarice e a mão a empurrar os carrinhos das crianças quando ele (Vlado) perguntou à sogra:
- A senhora gostaria de assistir à missa? Há uma igreja católica perto daqui”. (pág 57)
 Em 1966 Herzog deixou o Brasil, indo a trabalho para a BBC em Londres, com contrato assinado para prestar serviços por 3 anos. Clarice permaneceu em São Paulo, e após concluir o curso na USP no final do ano, se juntou ao marido em Londres.
Zora e Giga, pais de Vladimir Herzog, demonstravam o orgulho do filho: “Todas as noite em que Vlado estava escalado para a transmissão da BBC ao nosso país, Giga e eu escutávamos a sua voz. Era a mesma emoção cada vez. A voz do nosso filho vinda de ultramar, falando para milhares de pessoas”. (pág 53)
Depois do nascimento do primeiro filho, Ivo, o jornalista passou a assinar as cartas que enviava à sua mãe no Brasil como “O pai do Ivo”. Em 1968 nasceu André, o segundo filho do casal.
Clarisse e Vlado criaram os dois meninos junto com os filhos de Fernando e Fátima Pacheco Jordão, vizinhos e colegas de trabalho de longa data (Fernando e Vlado trabalharam juntos na redação do Estado e no jornalismo da TV Excelsior, além da BBC Londres); (Clarice e Fátima eram amigas do tempo do ginásio e depois colegas na universidade). Isso foi o que encorajou os Herzog a tentar a vida no velho continente.
Em carta a um amigo, datada de 8 de maio de 1968, dizia: “Essa vida sedentária, passiva, na Europa, está ficando sem sentido e a gente sente necessidade de ver-se integrado, bem ou mal, nalgum processo ou atividade criativa. Vou disposto a jogar uma boa cartada nesse negócio de TV educativa”.
Vladimir Herzog decide voltar para o Brasil, e com carta-compromisso de contratação da TV Cultura, que lhe garantia uma bolsa de estudos do governo britânico para um curso de produção de televisão, ficou até dezembro em Roma. Clarice e os filhos chegaram antes, em setembro.

Dois dias antes da viagem de Vlado para São Paulo, recebeu a notícia da decretação do AI-5, o que não deixava dúvidas: “Ditadura militar no Brasil” (pág 58).
“O país mergulhara de vez na escuridão do arbítrio. A promessa de paz na qual a família acreditara ao chegar ao Brasil começava a se quebrar. Iniciava-se, então, uma nova guerra”. (Pág 38).
Quando chega no Brasil, Vlado já sente as premissas contra os órgãos de comunicação. “As portas da TV Cultura, cuja direção havia assumido o compromisso de contratá-lo, uma vez concluído o curso de produção de TV na Inglaterra, fecharam-se para ele. Previsível, o motivo de lhe negarem o emprego tinha a ver com as informações que vinham dos arquivos policiais da ditadura, carimbando-o como subversivo.”
Trabalhou como publicitário por cerca de um ano, e Clarice descreve a experiência do marido no livro de Audálio: “Foi a época mais difícil e infeliz da vida dele. O trabalho para ele era a essência. Ele sofria terrivelmente por ter de fazer um trabalho que não tinha nada a ver com a cabeça dele”. (pág 60).
Depois disso, foi trabalhar como freelancer na revista Visão, para a qual produzia reportagens importantes. Nessa função, mais tarde, Vlado fez um profundo levantamento da situação em que estava a cultura no Brasil depois de dez anos de regime militar, em parceria com Zuenir Ventura. Era um ato de coragem.
Antes da abertura política, em 1973, a TV Cultura convidou Herzog a integrar a equipe de jornalismo dirigida por Fernando Pacheco Jordão. Até 1975, ainda esteva em contato com a revista Visão.
Foi durante o governo de Médici, o mais sanguinário e repressivo regime militar, que Jodão, Herzog e uma equipe integrada por alguns dos melhores jornalistas da época ousaram ao criar um novo jornalismo na TV Cultura, criando o programa ‘Hora da Notícia’. Jordão tornou de Vlado o editor do programa.
No dia 3 de setembro, Vlado pisou em terreno minado. Em meio à programação normal do Canal 2, um documentário sobre o líder do Vietnã do Norte foi ao ar. No mesmo instante Vlado mandou retirar o documentário da edição noturna e demitiu o responsável pela reportagem sobre o Vietnã.
Aquilo tinha cheiro de sabotagem.
Ainda assim, mesmo com as medidas rápidas tomadas por Vlado, os porões da ditadura começaram a mover os tentáculos em direção ao jornalista.
Uma nota foi divulgada no dia 7 por diversos jornais: “TV Educativa continua sendo uma nau sem rumo. Repercutindo –pessimamente- o documentário exibido pelo Canal 2, fazendo a apologia do Vietcong. Acho que o pessoal do PC da TV Cultura pensa que isto aqui virou o fio”
No final daquele mês o assunto se tornou uma bola de neve. O fato não era mais uma infiltração comunista no canal, e sim um “domínio total”. Não demorou muito para que um dos tentáculos do grande monstro procurasse por Vlado.
Em 24 de outubro de 1975, Herzog foi intimado a depor na manhã do dia seguinte, sábado, no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, localizado, ironicamente, no bairro do Paraíso.
O DOI-Codi era um órgão subordinado ao Exército, de inteligência e repressão do governo durante o regime civil militar brasileiro. A organização tinha como objetivo busca, apreensão, interrogatório de suspeitos, análise de informações e o planejamento estratégico, ou seja, o órgão perseguia e torturava supostos integrantes da esquerda.
Lá estavam 11 jornalistas: Sérgio Gomes, Marinilda Marchi, Frederico Pessoas da Silva, Ricardo de Morais Monteiro, José Póla Galé, Luiz Paulo da Costa, Anthony de Cristo, Paulo Sérgio Markun, Diléia Markun, George Duque Estrada e Rodolfo Konder.
Paulo Nunes acompanhou Herzog até o DOI-Codi. Fez isso a pedido de Clarisse e Rui Nogueira, diretor do Canal 2 onde Vlado trabalhava.
Vladimir Herzog foi torturado e obrigado a assinar uma declaração de culpa que dizia "Eu, Vladimir Herzog, admito ser militante do PCB desde 1971 ou 1972, tendo sido aliciado por Rodolfo Konder”.”


Em seguida, em um ato de bravura e indignação, Vladimir Herzorg rasgou o papel em pedaços. Talvez ele soubesse, talvez não, mas aquilo resultaria em sua morte. As torturas se tornaram cada vez mais fortes e os gritos, abafados pelo altíssimo som do rádio, cada vez mais baixos. Vladimir Herzog nao suportou a tortura e faleceu

Com o auxílio de uma fotografia mal montada e de um laudo assinado pelo ex-médico legista Harry Shibata, o episódio foi classificado como "suicídio"
Em 25 de outubro de 1975, o diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e amigo pessoal de Herzog, Fernado Pacheco Jordão, recebeu uma ligação que dizia “‘Fernando, uma notícia triste para lhe dar, o Vlado morreu. O Lang (jornalista da Rede Globo que cobria a área militar) ligou agora há pouco e disse que o II Exército está preparando uma nota oficial dizendo que o Vlado se suicidou.”
Da nota oficial, distribuída pelo comando do II Exército na manhã do dia 26 de outubro, dizia: “Cerca dás 16 horas, ao ser procurado na sala onde fora deixado desacompanhado, foi encontrado morto, enforcado tendo para tanto utilizado uma tira de pano. (...) As atitudes do senhor Vladimir Herzog, desde a sua chegada ao órgão do II Exército, não faziam supor o gesto extremo por ele tomado”
Depois da divulgação da clássica imagem de Herzog “enforcado” pelo cinto do macacão (cinto que, por sinal, não existia no uniforme dos prisioneiros), ninguém acreditava na versão oficial.
“O Sindicato dos Jornalistas, que ainda aguarda esclarecimentos necessários e completos, denuncia e reclama das autoridades um fim a esta situação, em que jornalistas profissionais, no pleno, claro e público exercício de sua profissão, cidadãos com trabalho regular e residência conhecida, permanecem sujeitos ao arbítrio de órgãos de segurança que os levam de suas casas ou de seus locais de trabalho, sempre a pretexto de que irão apenas prestar depoimento, e os mantêm presos, incomunicáveis, sem assistência da família e sem assistência jurídica, por vários dias e até por várias semanas, em flagrante desrespeito à lei. Trata-se de uma situação, pelas peculiaridades, capaz de conduzir a desfechos trágicos, como a morte do jornalista Vladimir Herzog, que se apresentara espontaneamente para um depoimento”.
A nota assinada por Audálio Dantas, autor do livro em questão e presidente do sindicato dos jornalistas.
O sindicato dos jornalistas se tornou um refúgio para profissionais de todas as áreas, pessoas cansadas de abaixar a cabeça para ditadores e principalmente cansados de ter suas bocas amordaçadas por um monstro cheio de tentáculos, um monstro chamado Censura.
Depois de sete dias da morte de Vlado, um culto ecumênico foi marcado. Os jornalistas mostraram quem verdadeiramente eram. Mostraram que ainda tinham voz, mesmo que durante aquela tarde do dia 31 de outubro, todos estivessem no maior e mais absoluto silêncio.
Oito mil pessoas se reuniram na Catedral da Sé. O culto contou com a presença de Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, e Dom Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife. Participaram também o pastor protestante James Wright e o rabino Henry Sobel.
Mais de 500 policiais foram escalados para montar barreiras de contenção pela cidade. Esta era a Operação Gutemberg e seu objetivo era impedir que as pessoas chegassem ao centro da cidade. Muitos ficaram presos no trânsito e desistiram de comparecer à Catedral.
Ainda assim, às 16 horas a catedral estava lotada. Agentes da repressão fotografavam e filmavam os presentes. Ainda assim, contrariando a expectativa que o governo tinha, tudo aconteceu da maneira mais calma e contida possível.


Contudo, o regime ditatorial tremeu perante aquele grito silencioso. Audálio Dantas diz que “a história recente do Brasil pode ser escrita assim: antes e depois de Vlado”
O jornal “O Estado de S.Paulo” aceitou publicar matéria paga de uma página, custeada por 1.004 jornalistas de vários estados, apontando os casos de tortura e morte patrocinados pelo regime – outra iniciativa do Sindicato dos Jornalistas. Outros jornais ganharam coragem e fizeram pequenas e médios comentários que fugiam à AI-5.
A imprensa estava acordando.
Em janeiro de 1976, o monstro  da ditadura fez mais uma vítima quando o metalúrgico Manuel Fiel Filho morreu por tortura. Isso ocasionou um fato inédito: um comandante do 3º Exército foi demitido.
O barco estava cheio de rachaduras e homens e ratos tentavam se salvar. Alguns se jogavam no mar, enrolavam-se em suas mentiras e afundaram com ela. A abertura lenta, gradual e segura era o plano do capitão.

Texto de Gabriela Leão Mandaji