sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

[conto] A Fuga

Poucas são as pessoas que realmente precisaram fugir de algo ou alguém. A palavra pode ser empregada em um sentido mais poético, quando “fugimos” de uma lembrança, de uma responsabilidade ou de qualquer outra coisa que não nos faz bem.
Há cerca de dez anos, eu fugia de pessoas. Alguns meses antes, levei um belíssimo pé na bunda de uma namorada (aquelas que parecem ser mais bem aceita na família do que você mesmo) e todos os meus conhecidos não paravam de me fazer perguntas sobre ela. Antigamente não tinha essa história de Facebook e Whatsapp. Havia três maneiras de ter notícias de alguém: pessoalmente, por telefone ou pelas fofocas - então eles não me deixavam em paz.
Eu estudava de noite porque precisava trabalhar de manhã (pra pagar a faculdade), então costumava chegar em casa bem depois da meia noite. Por conta desse contexto todo que acabei de dizer, eu estava chegando em casa cada vez mais tarde. Não que eu estivesse no bar, me afundando em cervejas e abraçando o garçom. Não, não. Eu ficava na faculdade até me expulsarem de lá (pois é), e depois pegava o ônibus mais demorado que encontrava - ia cochilando a maior parte do caminho.
Naquela época as cidades não eram tão perigosas como hoje em dia. Eu costumava descer alguns pontos antes e terminar meu trajeto à pé. Era bom andar em silêncio, sem nada além de meus pensamentos (que estavam muito em ordem, caso você comece a se questionar em breve).
Em uma fatídica noite de agosto, eu decidi ir andando por um novo caminho. Fazia mais de seis meses que estava adquirindo gosto por minhas caminhadas noturnas e não achei que um desvio fosse me dar algum tipo de problema. Eu era um perfeito idiota.
Desci do ônibus e ajeitei a blusa porque estava frio pra caramba. Eu tinha passado por aquela via apenas algumas vezes, mas sabia onde ela terminava: bem perto de casa. Fui andando, observando as casinhas, ouvindo os cachorros latindo... Normal.
Foi então que comecei a sentir um tipo de desconforto. Primeiro pensei que estava passando mal. Era uma coisa nas entranhas, uma sensação nova. Pensei que talvez estivesse morrendo do coração ou alguma coisa assim. Se tivesse um celular, teria chamado uma ambulância. Decidi que iria pedir ajuda em alguma casa e rezei para que alguma boa alma viesse me ajudar. 
Eu toquei a campainha da casa, mas não ouvi nenhum som. No silêncio daquela noite, era possível ouvir até mesmo a minha respiração... Sim, eu ouvia minha respiração e nada mais. Não tinha barulho de cachorro, vento... Nada.
Talvez eu estivesse ficando surdo também, não? Percebi que eu não estava mais sentindo frio. Abri o zíper da jaqueta e respirei fundo. O mundo parecia ter parado. Abri a boca e soltei um “Ei!” que ecoou pela rua. Eu não estava surdo, afinal.
No entanto, outra coisa também me ouviu. Do final da rua eu vi uma criatura vindo com passos rápidos. Era uma espécie de cão, mas do tamanho de um urso (nunca vi um urso de verdade, mas tenho uma noção do tamanho do bicho). No momento em que coloquei os olhos sobre a coisa, meu coração bateu com tanta força que pensei que teria um ataque de verdade.
Comecei a correr.
Foi ali que descobri o outro significado da palavra fugir. As pessoas não fogem das cadeias... Elas escapam. As pessoas não fogem de cachorros, elas se protegem das mordidas. O ser humano não sabe mais o que e fugir porque nada nos caça. Nós evoluímos e aprendemos a manter leões em jaulas. Nosso alimento vem de matadouros. Não somos mais parte da cadeia alimentar. Nós somos uma coisa a parte, uma coisa que nem caça e nem é caçada.
Pelo menos é o que eu pensava.
Eu corria desesperadamente, sem nem olhar para trás. Pelo tamanho do bicho, ele me alcançaria rapidamente se quisesse. Quando minhas pernas começaram a ter cãibras, me joguei no chão e me enfiei debaixo de um carro estacionado. Tentei controlar a respiração porque a criatura poderia me ouvir... Tentei avaliar a situação de alguma maneira racional.
Talvez aquilo fosse mesmo um cachorro e tivesse escapado de uma casa. Se fosse isso, ele não teria me perseguido tão longe. Talvez eu estivesse tendo um troço e imaginado aquilo tudo... Sim, era provável. Respirei fundo e tentei olhar para os prédios ao redor. Tinha corrido completamente sem rumo e agora estava perdido.
Me arrastei um pouco para fora para tentar enxergar o final da rua. Talvez se conseguisse ver a placa que estava no poste...
Então ouvi um rosnado. Me encolhi para meu ridículo esconderijo e ali permaneci sentindo cada músculo do meu corpo tremendo como uma menininha. Era real. Aquela coisa não era um cachorro, aquela coisa não era alucinação... e aquela coisa estava chegando perto.
Quando vi a sombra das patas do animal, levei as mãos ao rosto e apertei meu nariz e boca para evitar mais ruídos. Percebi que eu estava chorando e meu rosto estava molhado. Ele andava devagar, rosnando baixinho...  Esse rosnado ainda me faz tomar remédios para... ficar mais calmo.O bicho deu mais alguns passos e eu liberei um pouco de ar para meus pulmões. Não sei se a coisa me ouviu ou não, mas ele virou a cara na minha direção. Então eu vi os olhos daquilo. Dentro do crânio do animal havia fogo. Os olhos eram como duas brasas, mas de alguma maneira, não deixavam a luz sair. Não sei como era o resto da cara do bicho, se tinha focinho ou se tinha lábios... Não sei. Depois que vi aquele par de olhos, eu voltei a correr.
Enquanto corria, ouvia a coisa vindo atrás de mim. Ele não estava dando o melhor de si, parecia estar se divertindo comigo porque eu ouvia as patas galopando atrás de mim... O som abafado era alto o suficiente para me fazer gritar pedindo ajuda.
Como ninguém via aquele bicho? Como o exército não estava ali jogando mísseis? Eu não sei. Como eu disse, parecia que o mundo tinha parado. Eu corri sem parar durante muito tempo – bem mais do que julgava ser capaz.
Em certo ponto eu pensei em desistir. Por que estava correndo tanto? Eu tinha dois irmãos que cuidariam dos meus pais quando ficassem velhos, eu não tinha namorada, eu não tinha filhos, ninguém precisava de mim... Então, pra quê correr?
Antes de concluir o pensamento eu tropecei (ou minhas pernas fraquejaram), e eu caí no chão como uma peça de alcatra. Senti o asfalto lixar meu rosto e antes de erguer os olhos, o bicho pulou por cima de mim. O pensamento sobre parar de correr virou fumaça e eu percebi que não podia ser pego por aquela coisa. Aquilo não era um bicho, aquilo era um demônio! O que acontece com as pessoas comidas por demônios?
Eu não queria saber.
Me arrastei pra calçada enquanto o bicho chegava perto. Comecei a rezar uma Ave Maria, mas eu não sabia mais da metade da reza. Imaginei que Deus estivesse pouco se lixando para mim porque nem rezar eu sabia. Tentei me lembrar da última vez que entrei em uma igreja, mas também não me lembrava.
Então o bicho chegou mais perto e mordeu minha perna. Lembro que senti uma dor tão forte que não consigo nem descrever... Eu sabia que tinha perdido o membro e logo perderia mais. Enquanto me mastigava, o bicho chegava mais perto. Eu fechei os olhos e gritei.
Quando abri os olhos, estava na calçada, era dia e um senhorzinho me encarava. Me encolhi para trás. O quê? O bicho tinha se transformado no velho?
– Não quero bêbados na minha calçada!! –ele disse.
Eu não estava bêbado. Olhei para minha perna e soltei um xingamento. Ela estava machucada, mas ainda estava lá. A calça estava rasgada na panturrilha, havia sangue seco no jeans... Passei a mão pelo rosto e senti os machucados na bochecha. Aquilo tudo tinha sido real, não tinha como ser coisa da minha cabeça.

O velho continuava me olhando feio, eu me levantei pedindo desculpas... Fui para casa, inventei uma história sobre um assalto... Mas até hoje não sei bem o que aconteceu. Hoje em dia tenho uma cicatriz na perna. Não parece coisa feita por dentes, parece uma queimadura profunda. Não gosto de mostrá-la para ninguém... E, o mais estranho, é que às vezes sonho que eu sou a coisa... E, deus... Eu tenho fome. 


3 comentários:

  1. Pelo visto você gosta da cultura nórdica, pude perceber pela foto de Fenris e em alguns vídeos seus você aparece usando um Mjölnir. Qual a sua relação com os escandinavos?

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    1. Eita e.e

      Érh, bem... Eu sou uma admiradora de culturas antigas. Sei pouco, tento ler alguns livros para absorver um pouco mais do assunto, mas ainda me considero bem leiga. De migalha em migalha vou adquirindo maneiras de lembrar dos significados que os deuses deveriam ensinar às pessoas.
      Levo o Mjolnir no pescoço para me lembrar das Nove Nobres Virtudes.
      Basicamente é isso.

      Obrigada por ler o blog, caro viking stalker <3

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  2. Você já leu O Cão dos Baskervilles? Você basicamente descreveu o cão de lá, você devia ler o livro, é bem legal e pra variar, o conto tá ótimo <3

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